terça-feira, 15 de julho de 2014

ATX-BA : Transplante de órgãos: aspectos jurídicos e humanitários

Transplante de órgãos: aspectos jurídicos e humanitários
by Alessandra Strazzi | jul 14, 2014 | Destaques, Direito Civil


Você já conversou com seus familiares sobre doação de órgãos? Já disse a eles, claramente, se você é (ou não) um doador? Sabia que é deles a escolha sobre doar ou não seus órgãos caso você venha a falecer?

A morte (e, por consequência, a doação de órgãos) é ainda um assunto tabu na sociedade brasileira. As pessoas não gostam de falar sobre isso. Mas a vida de milhares de pessoas que aguardam na fila por um transplante depende desta simples conversa.




O sofrimento…

A lista de espera por transplantes de órgãos e tecidos no Brasil está atualmente em torno dos 60 mil pacientes, de acordo com dados do Ministério da Saúde.

Recentemente, a equipe do JusBrasil recebeu o comovente depoimento de um colega jusbrasileiro que passa pelo sofrimento de estar em uma dessas filas de espera:

“Caros amigos do JusBrasil. Ocupo este espaço para fazer um desabafo. Assim como uma flor que murcha, minha vida está encurtando cada dia mais, em virtude de uma grave doença que tenho no coração, na qual necessito de um transplante de coração, mas que até agora não encontrei um doador.

É extremamente revoltante que o governo priorize a copa com gastos exorbitantes, ao invés de priorizar áreas como educação e saúde, pois enquanto nossos estádios estão lindos maravilhosos, a nossos hospitais e escolas não passam de sucatas. Infelizmente se não há investimentos em educação e saúde, a expectativa de vida dos brasileiros tende a diminuir, pois no meu caso estou morrendo e não ha incentivo algum por parte do governo em melhorar a estrutura dos hospitais e incentivar a doação de órgãos para salvar vidas.

Desculpem-me amigos JusBrasileiros, mas eu precisava desabafar, pois eu estou morrendo, e não ha mais nada a ser feito a essa altura do campeonato, não ha como eu encontrar um doador compatível na longa fila de transplantes, eu sei que vou morrer. Gamaliel Gonzaga”



É compreensível a revolta do colega, mas o maior entrave para o aumento no número de transplante de órgãos no nosso país é, ainda, a mentalidade das pessoas. É preciso reconhecer que o Brasil é responsável pelo maior sistema público de transplantes do mundo, sendo que 95% das cirurgias realizadas no País são feitas pelo SUS (Sistema Único de Saúde – fonte).

Dados da ABTO (Associação Brasileira de Transplante de Órgãos) mostram que não é a falta de estrutura, mas a negativa familiar o principal motivo para que um órgão não seja doado no Brasil.

O número de pessoas na fila de espera por transplante de órgãos caiu 40% nos últimos cinco anos, de acordo com dados de 2.013 do Ministério da Saúde (fonte). Ainda de acordo com a mesma matéria, nos últimos dez anos, o número de transplantes aumentou em quase 50% no Brasil (7.556 cirurgias em 2003 e 15.541 em 2.013).

Por outro lado, infelizmente, de todas as mortes encefálicas que ocorrem no Brasil, pouco mais da metade se transforma em doação. O número de rejeição familiar cresceu de 41%, em 2012, para 47% em 2013, ou seja, houve um retrocesso (fonte).

Pesquisas mostram que a principal justificativa para decisão de não doar órgãos é o medo (fonte). Ainda, de acordo com o nefrologista José Medina Pestana, a principal justificativa das famílias para não doar órgãos é o fato de nunca terem conversado sobre o desejo de doar (fonte). Por isso campanhas de conscientização e desmistificação são muito importantes.

O que é transplante de órgãos?



“Transplante é um tratamento que consiste na substituição de um órgão ou de um tecido doente de uma pessoa (chamada de receptor) por outro sadio, de um doador vivo ou falecido.”

No caso de doador de órgão falecido, a retirada dos órgãos e tecidos só ocorrerá após o diagnóstico de morte encefálica do paciente (veja explicação sobre isso mais abaixo).

É importante destacar que o diagnóstico de morte encefálica deve ser afirmado por dois médicos NÃO participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos rigorosos. Só isso já torna muito difícil a existência de fraudes (imagine que, para alguém “comprar” um órgão, seria necessário corromper não apenas a equipe de transplantes inteira, como também esses dois médicos que não estão relacionados com a equipe).


Além disso, é legalmente admitida a presença de um médico de confiança da família do falecido no ato de declaração da morte encefálica. Veja o que diz a Lei 9.434/97 (lei que rege os transplantes de órgãos e tecidos no Brasil, com exceção do sangue, óvulo e esperma):

“Lei 9.434/97. art. 3º A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina.
(…)
§ 3º Será admitida a presença de médico de confiança da família do falecido no ato da comprovação e atestação da morte encefálica.”

O portal de transplantes do Ministério da Saúde define morte encefálica da seguinte forma:

É a morte do cérebro, incluindo tronco cerebral que desempenha funções vitais como o controle da respiração. Quando isso ocorre, a parada cardíaca é inevitável. Embora ainda haja batimentos cardíacos, a pessoa com morte cerebral não pode respirar sem os aparelhos e o coração não bater, por mais de algumas poucas horas. Por isso, a morte encefálica já caracteriza a morte do indivíduo. Todo o processo pode ser acompanhado por um médico de confiança da família do doador. É fundamental que os órgãos sejam aproveitados para a doação enquanto ainda há circulação sanguínea irrigando-os, ou seja, antes que o coração deixe de bater e os aparelhos não possam mais manter a respiração do paciente. Mas se o coração parar, só poderão ser doadas as córneas.”

Repare bem que nesses casos em que é declarada a morte do cérebro, a pessoa só respira com a ajuda de aparelhos e o coração só continuará batendo por pouco tempo. É a respiração artificial o batimento do coração que mantém outros órgãos oxigenados, permitindo que eles sejam utilizados para transplante.
  
Ou seja, morte encefálica, quando adequadamente diagnosticada, é morte. Não é uma espécie de coma ou estado vegetativo. Não existe chance da pessoa com morte encefálica recuperar-se (fonte). Além disso, é a hora de declaração da morte encefálica que deve constar no atestado de óbito, e não a hora da retirada do ventilador (fonte).


Mitos a respeito da doação e transplante de órgãos


Existem muitos mitos e desinformação a respeito da doação e transplante de órgãos que, infelizmente, ainda influenciam negativamente as pessoas.

O portal da ABTO traz alguns desses mitos e procura desmenti-los:

1) Se os médicos do setor de emergência souberem que você é um doador, não vão se esforçar para salvá-lo.
Se você está doente ou ferido e foi admitido no hospital, a prioridade número um é salvar a sua vida. A doação de órgãos somente será considerada após sua morte e após o consentimento de sua família.

2) Quando você está esperando um transplante, sua condição financeira ou seu status é tão importante quanto sua condição médica.
Quando você está na lista de espera por uma doação de órgão, o que realmente conta é a gravidade de sua doença, tempo de espera, tipo de sangue e outras informações médicas importantes.

3) Necessidade de qualquer documento ou registro expressando minha vontade de ser doador.
Não há necessidade de qualquer documento ou registro, apenas informe sua família sobre sua vontade de ser doador.

4) Somente corações, fígados e rins podem ser transplantados.
Órgãos necessários incluem coração, rins, pâncreas, pulmões, fígado e intestinos. Tecidos que podem ser doados incluem: córneas, pele, ossos, valvas cardíacas e tendões.

5) Seu histórico médico acusa que seus órgãos ou tecidos estão impossibilitados para a doação.
Na ocasião da morte, os profissionais médicos especializados farão uma revisão de seu histórico médico para determinar se você pode ou não ser um doador. Com os recentes avanços na área de transplantes, muito mais pessoas podem ser doadoras.

6) Você está muito velho para ser um doador.
Pessoas de todas as idades e históricos médicos podem ser consideradas potenciais doadoras. Sua condição médica no momento da morte determinará quais órgãos e tecidos poderão ser doados.

7) A doação dos órgãos desfigura o corpo e altera sua aparência na urna funerária.
Os órgãos doados são removidos cirurgicamente, numa operação de rotina, similar a uma cirurgia de vesícula biliar ou remoção de apêndice. Você poderá até ter sua urna funeral aberta.

8) Sua religião proíbe a doação de órgãos.
Todas as organizações religiosas aprovam a doação de órgãos e tecidos e a consideram um ato de caridade.

9) Há um verdadeiro perigo de alguém poder ser drogado e quando acordar, encontrar-se sem um ou ambos os rins, removidos para ser utilizado no mercado negro dos transplantes?
Essa história tem sido largamente veiculada pela Internet. Não há absolutamente qualquer evidência de tal atividade ter ocorrido. Mesmo soando como verdadeira, essa história não se baseia na realidade dos transplantes de órgãos.

Gostaria de destacar o item nº 8 (religião). Eu não sei se a reposta dada pela ABTO a este item é correta, pois não conheço todas as religiões e já ouvi muitas pessoas que se dizem contrárias à doação de órgãos por motivos religiosos.

Entretanto, fundamentada na doutrina cristã, posso afirmar que se você se recusa a ser doador de órgãos por motivos pretensamente religiosos, repense seu posicionamento e lembre-se da parábola do bom samaritano e das palavras de Jesus Cristo: “Fora da caridade não há salvação”. Ser doador é um ato de caridade e solidariedade.




Ainda tem medo?


Como já mencionado, a lei torna muito difícil a existência de fraudes. Além de ser necessário que dois médicos não participantes da equipe de transplantem atestem a morte cerebral, a lei prevê ainda diversas sanções penais (crimes) e administrativas, caso os procedimentos sejam feitos em desacordo com a lei ou de forma fraudulenta. Podem ser punidos tanto os participantes da equipe (médicos, enfermeiros, etc.) quanto o estabelecimento de saúde (hospitais). As sanções incluem prisão (penas que variam desde detenção de seis meses a dois anos nos crimes mais leves até reclusão de 8 a 20 anos, no crime mais grave), multa e desautorização temporária ou permanente de funcionamento.

Inclusive, é obrigatório que o hospital mantenha em arquivo relatórios dos transplantes realizados, caso seja necessária averiguação posterior do procedimento.

Lei 9.434/97, art. 3º, § 1º Os prontuários médicos, contendo os resultados ou os laudos dos exames referentes aos diagnósticos de morte encefálica e cópias dos documentos de que tratam os arts. 2º, parágrafo único; 4º e seus parágrafos; 5º; 7º; 9º, §§ 2º, 4º, 6º e 8º, e 10, quando couber, e detalhando os atos cirúrgicos relativos aos transplantes e enxertos, serão mantidos nos arquivos das instituições referidas no art. 2º por um período mínimo de cinco anos.

Como faço para ser um doador de órgãos? Devo fazer constar isto em meu RG?


Converse com a sua família sobre o desejo de ser doador de órgãos, pois é a família que assina o termo de consentimento autorizando o procedimento de remoção, nos termos da Lei 9.434/97.

Lei 9.434/97, art. 4o. A retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas para transplantes ou outra finalidade terapêutica, dependerá da autorização do cônjuge ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive, firmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte.

No caso de menores de idade e outras pessoas civilmente incapazes, retirada de órgãos e tecidos só será realizada mediante autorização expressa de ambos os pais ou responsáveis legais.

Lei 9.434/97, art. 5º.A remoção post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoa juridicamente incapaz poderá ser feita desde que permitida expressamente por ambos os pais, ou por seus responsáveis legais



Originalmente, esta lei previa que a expressão “não-doador de órgãos e tecidos” deveria ser gravada na Carteira de Identidade Civil (RG) e na CNH de forma que todos que não se manifestassem neste sentido seriam doadores automaticamente (parágrafos do art. 4º). Era a chamada a lei de doação presumida. Esta previsão não existe mais, pois os parágrafos do art. 4º foram revogados pela lei 10.211/2001.

Lei 10.211/2001, art. 2º As manifestações de vontade relativas à retirada “post mortem” de tecidos, órgãos e partes, constantes da Carteira de Identidade Civil e da Carteira Nacional de Habilitação, perdem sua validade a partir de 22 de dezembro de 2000.

Por isso é tão importante conversar sobre o assunto! Ainda que você seja, em seu íntimo, um doador de órgãos, se sua família não souber disso, nada adiantará! É da família a decisão final. Por isso, é muito importante que os parentes respeitem a vontade do falecido.

Conclusão

Ainda que o Brasil seja responsável pelo maior sistema público de transplantes do mundo e tenha havido significativo progresso nesta área, notamos que ainda há muito a se fazer, principalmente no que diz respeito à conscientização das pessoas na forma de campanhas.

Encontrei diversas campanhas de órgãos públicos a respeito da doação de órgãos (inclusive uma ótima campanha do CNJ chamada “Doar é Legal”). Entretanto, tudo muito tímido em comparação com a importância do assunto.

Não podemos simplesmente aguardar, inertes, a ação do governo. Precisamos agir. Manifeste a sua vontade de ser doador, converse com a sua família. Se você é parente de um doador, respeite a vontade dele(a)!

Uma maneira bastante eficiente de manifestar sua vontade de ser doador de órgãos é através do Facebook, a rede social mais popular do Brasil. O Ministério da Saúde e o Facebook fizeram uma parceria para incentivar a doação de órgãosPara manifestar sua vontade de ser doador de órgãos, siga estes passos:
1.    Faça login em sua conta no Facebook;
2.    Clique em Evento cotidiano no topo da sua Linha do Tempo;
3.    Selecione Saúde e bem-estar;
4.    Selecione Doador de órgãos;
5.    Selecione o seu público e clique em Salvar.

E você, o que pensa sobre isso? Vamos destruir este tabu conversando sobre o assunto? Convido você a expor sua opinião nos comentários aqui no meu blog ou então no JusBrasil, onde também postei este artigo. Comente, compartilhe, concorde ou discorde! Vamos transformar os 47% de rejeição familiar que mencionei no princípio deste artigo em 1%!

Aviso importante
Decidi incluir este aviso porque alguns sites têm republicado meus artigos sem citar o endereço da publicação original.
Este artigo foi postado originalmente no meu blog e, posteriormente, no meu perfil do site JusBrasil e pode ser acessado a partir dos seguintes links:


FONTE:http://alessandrastrazzi.adv.br/direito-civil/transplante-de-orgaos-aspectos-juridicos-e-humanitarios/

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