terça-feira, 7 de abril de 2009

REVISTA ÉPOCA
03/04/2009 - 15:52 - Atualizado em 03/04/2009 - 22:50
Drauzio Varella e os transplantes
O médico estreia uma nova série sobre o assunto e descobre que o problema no Brasil não é a falta de órgãos, mas a falta de recursos médicos para aproveitá-los
Cristiane Segatto

CRISTIANE SEGATTO cristianes@edglobo.com.br Repórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve sobre medicina há 14 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais de jornalismo.

No dia 12, o médico Drauzio Varella estreia mais uma de suas ótimas séries exibidas no Fantástico, da TV Globo.
Desta vez, o nome será Transplante, o dom da vida.
Drauzio passou mais de um ano trabalhando no tema. Viajou pelo Brasil e para países como China, Espanha e Estados Unidos para conhecer de perto realidades que podem contribuir para a melhoria do sistema brasileiro. Teve tempo e dinheiro à vontade para apurar o que fosse necessário, um investimento raríssimo na imprensa brasileira.
Conversei com ele nesta semana para saber o que descobriu. Assim como os bons repórteres, Drauzio acha que nada substitui o trabalho de campo. As ideias preconcebidas que temos antes de começar a apurar uma reportagem e toda a discurseira que ouvimos na redação costumam cair por terra quando encaramos a realidade como ela é.
Na área de saúde (e acho que nas outras também), isso acontece o tempo todo. Drauzio tinha a convicção de que faltam órgãos para transplante porque as famílias dos mortos não aceitam doar.
Durante a apuração das reportagens, aprendeu que estava errado. Em São Paulo, 70% das famílias aceitam fazer a doação. A cada ano, o estado registra 14 mil mortes encefálicas. Isso significa que haveria quase 10 mil doadores potenciais a cada ano.
Em 2008, no entanto, o estado que concentra o maior número de transplantes do país realizou apenas 1.317 procedimentos desse tipo.
As filas não andam porque a captação de órgãos no Brasil é muito deficiente. A captação é o nome técnico para a série de procedimentos necessários para que a retirada dos órgãos se concretize. O cadáver precisa ser mantido num leito de UTI e receber uma série de cuidados para que os órgãos não entrem em sofrimento. Além disso, o médico que relata o óbito à central de transplantes precisa preencher uma papelada que toma um tempo que ele simplesmente não tem. "Quando o médico tem dez doentes para cuidar e ainda precisa zelar pelo cadáver, ele escolhe os vivos", diz Drauzio Varella.

Drauzio foi à Espanha para entender como os espanhóis resolveram esse problema. É o país que tem o maior índice de doação por habitante em todo o mundo. Descobriu que a solução pode ser simples.
Em cada hospital de grande movimento há um plantonista contratado exclusivamente para cuidar dos cadáveres na UTI e preencher todos os papéis necessários para a realização dos transplantes. "O custo de se manter um plantonista a mais em cada hospital é infinitamente inferior ao benefício oferecido pelos transplantes a tantas pessoas", afirma Drauzio.
O médico viajou também aos Estados Unidos para conhecer as técnicas mais avançadas e esteve na China. Foi a primeira equipe de TV brasileira a filmar um transplante de rim intervivos no país. Os transplantes desse tipo vem crescendo na China. Durante muitos anos, no entanto, o país conseguiu reduzir a espera pelas cirurgias ao usar órgãos de condenados à morte. O utilitarismo chinês é chocante. Uma ambulância estaciona ao lado do local onde os presos são executados. O cadáver é levado para o carro e aberto ali mesmo para a retirada dos órgãos. "Quando estive lá, os chineses disseram que estavam deixando de usar esse sistema", diz Drauzio, sem muita convicção. Ainda não assisti à série, mas imagino que tenha sido tão bem feita quanto as anteriores.
Durante meses, Drauzio acompanhou doentes brasileiros que foram inscritos na lista de transplante e se tornaram reféns de decisões alheias. Entrar numa fila dessas é uma das experiências mais devastadoras que uma pessoa pode enfrentar.
Durante os últimos anos, entrevistei muitos brasileiros nessa situação – principalmente os da fila do fígado, a lista mais cruel.
Seis mil brasileiros disputam um fígado. Dois em cada três inscritos morrem antes de conseguir o transplante.
Nunca esqueci um desses doentes. Humberto Costa tinha 54 anos e morava na Bahia quando outro Humberto Costa era o ministro da Saúde. Com o fígado destruído pela hepatite C, Humberto (o sem poder) foi inscrito na fila de transplantes de São Paulo em 2000. Esperou cinco anos até se tornar o primeiro da fila entre os pacientes com tipo sanguíneo B. Achou que sua vez havia chegado. Mudou-se para São Paulo com a mulher e instalou-se num flat apertadinho perto do hospital à espera do telefonema salvador. Quando o conheci, ele estava há oito meses como o primeiro da fila. E o telefonema nunca aconteceu. Reproduzo aqui um pouco de sua agonia:

Humberto Costa usava práticas orientais na tentativa de melhorar a qualidade de vida e sobreviver na fila do transplante de fígado. Não conseguiu: morreu antes
"Sonho que meu doador apareceu e acordo à noite achando que o telefone está tocando. Quando a bateria do celular descarrega, fico tenso. Só estou aguentando esse drama porque descobri uma prática oriental que contribui para a purificação física e espiritual. Não quero perder meu lugar na fila depois de tanto tempo".
A preocupação de Costa era totalmente justificável. Naquele momento, em julho de 2005, o Ministério da Saúde pretendia mudar os critérios para inclusão de pacientes na fila do fígado. Até aquela data, o que valia era a ordem cronológica (os pacientes que entraram na fila primeiro eram operados primeiro). As autoridades resolveram adotar o critério de gravidade (chamado de Meld). Por esse critério, os pacientes em estado mais grave ganham pontos adicionais e ocupam as primeiras posições na fila. Para alguns especialistas, a mudança foi benéfica porque deu alguma chance aos pacientes graves que não resistiriam à espera. Para outros especialistas, a mudança não será capaz de produzir benefícios enquanto a oferta de fígados for imensamente inferior à quantidade de candidatos. A discussão é infindável, mas a alteração de critérios mudou a história de Humberto.
As autoridades alteraram a regra com a bola em campo (como se diz no futebol). Não houve uma fase de transição. De uma hora para outra, o doente que permaneceu durante oito meses como o primeiro da fila perdeu dezenas de posições na lista. Alguns meses depois, recebi um telefonema da Bahia. Do outro lado da linha, um parente de Humberto me deu a notícia: – Ele morreu. Sem conseguir o transplante.
Você tem algum conhecido que está ou esteve na fila de transplante? O que você acha que o Brasil deveria fazer para melhorar o sistema. Queremos ouvir a sua opinião.

Comentários
Isabel Bulhões AL / Maceió 07/04/2009 11:36 Transplante de fígadoTenho polineuroparia epriférica axonal, ou seja, uma doença que destrói meus nervos periféricos, das pernas, no início e agora também dois braços. Além de ter muitas dores, vou perdendo a sensibilidade e mais tardiamente os movimentos. A minha é genética , provssivelmente amiloidose (aguardo os exames feitos no Hospital da USP de Ribeirão Preto. (detalhe: quando viajo com acompanhante, obrigatório no meu caso, recebo depois de 2 a 3 meses, 50 reais de diária para os dois. É pra ficar debaixo da ponte e passar fome, né?) Se for amiloidose, posso precisar de um transplante de fígado, e nas condições do Brasil, na fila "furada" pelos que têm posses e podem fretar um avião para buscar um órgão, como ficamos nós, dependentes do SUS? E que SUS é esse, por que tanto lutei, como farmacêutica da rede pública, por mais de 30 anos, e vejo que quase nada mudou? Será que consigo o transplante? Será que quando ele chegar já não estarei em cadeira de rodas e com os órgãos internos comprometidos? Tudo isso me preocupa e até assusta. Algo precisa ser feito com urgência pelas autoridades. Nós, brasileiros, dependentes do SUS estamos órfãos. Ninguém se importa se morremos ou ficamos vivos, essa é a verdade.
Eliani MG / Alfenas 06/04/2009 20:32 Eu consegui.Nós conseguiremosFui diabética tipo 1 desde poucos meses de vida,fiquei com ela por 35 anos.Fui transplantada há 2 anos e5 meses pela equipe fantástica do HFR em BH.Aqui em Alfenas já ví casos de morte encefálica(meu cunhado é o diretor da Sta Casa)e por falta de conhecimento de praticamente todos os médicos,as famílias queriam doar todos ou qualquer orgão do parente e,simplesmente não conseguiam por desenformação médica.Grande parte dos médicos daqui,não têem nenhum conhecimento nem para atendimento nem para encaminhamento.Se o ministerio da Saude quiser pode mudar isso,né?Pedi ao senhor Dr Drauzio,num E mail que lhe enviei para fazer uma reportagem sobre essse assunto.Minha eterna gratidão.
Luiz Carlos Werle SP / São Paulo 06/04/2009 19:52 DEUS NOS ACUDA !!!A minha esposa está na fila de transplante de fígado,mas como sei de todas as dificuldades para conseguir a cirurgia,estamos fazendo exames de compatibilidade com dois filhos.A maior dificuldade neste país é a informação confiável da parte dos médicos, pois parece que se eles não vão conseguir ganhar muuitto dinheiro com o paciente eles simplesmente vão "empurrando com a barriga" até o "coitado" morrer.Qualquer informação tem que ser tirada a "fórceps" ou garimpada na internet que graças a Deus temos acesso hoje em dia,mas é claro que isto já não surpreende mais ninguém pois em um país onde cada vez mais aumenta o número de denuncias sobre corrupção e escândalos de todos os tipos, além do fato também de entrarem no mercado de trabalho diáriamente mais profissionais liberais de todas as profissões,advogados,engenheiros,dentistas e até políticos que mal sabem falar mas querem todos "se dar bem", só nos resta rezar.