terça-feira, 3 de novembro de 2009

Tribuna do Norte

“O Brasil ainda está na fase assistencial”
Publicação: 03 de Novembro de 2009 às 00:00

A médica Mary Evelyn Dantas é potiguar e pioneira no transplante de medula óssea no Brasil. Ela foi uma das fundadores do Programa Nacional de Transplante de medula, em 1982, e mora há 23 anos nos Estados Unidos. Na última quinta-feira, a médica proferiu uma palestra no programa de divulgação científica Quinta da Ciência sobre os avanços em ciências médicas. Mary Evelyn também conversou com a reportagem da TRIBUNA DO NORTE sobre o tratamento com transplante de medula, as possibilidades de cura, além do desenvolvimento do programa nacional de transplantes.
Elisa Elsie
A possibilidade de encontrar um doador compatível dentro da família, entre irmãos, é de uma em quatro. Ou seja, 25%”Para a médica, o Programa implementado no Brasil é “muito bom”, embora o país ainda precise avançar quanto ao número de doadores voluntários e no financiamento de pesquisas científicas. “No Brasil, não existe ainda uma consciência e um compromisso das empresas privadas, por exemplo, em contribuir com a ciência”, afirma.
O que é o transplante de medula óssea?
O transplante de medula óssea é um tratamento que é feito para pacientes que têm determinados tipos de doenças hematológicas, do sangue. Quando um tratamento precisa de muitas doses de radiação e quimioterapia para se debelar um câncer se destrói a medula óssea também. Então o transplante de medula óssea vem para fazer um resgate da medula destruída. O transplante em si pode ser feito através da aspiração da medula óssea dos ossos da bacia ou com a coleta de células-tronco que são produtoras das células sanguíneas a partir de medicamentos administrados junto aos doadores. Os medicamentos mobilizam as células-tronco que vão circular no sangue periférico.
Hoje, quando a gente fala em transplante de medula óssea existem várias fontes onde essas células podem ser obtidas. Eles podem ser obtidas tanto na medula quanto no sangue periférico ou ainda no cordão umbilical. Essas são as três fontes.
Então, o tratamento com transplante é feito para dar o suporte para a destruição medular que o tratamento do câncer realizou. Essa é uma das indicações. A outra indicação é porque a imunologia do doador pode debelar o câncer. As células do doador vão reconhecer as células do câncer como se não fossem suas e vai haver uma reação imunológica contra isso. Ainda há a indicação de transplante para quando a medula óssea está doente propriamente, quando ela não está funcionando totalmente ou parcialmente.
Como é feita a substituição?
É como se fosse uma transfusão de sangue. Mas é mais complexo porque para que o indivíduo receba a medula sem rejeição é importante usar medicações que acabam deixando o indivíduo mais susceptível a infecções até que a medula óssea consiga produzir normalmente.
Em termos leigos, a medula óssea é responsável pela renovação do sangue?
É. A medula óssea é o órgão que fabrica o nosso sangue. Fabrica as células que carregam o oxigênio, que são as células vermelhas, e as células brancas, responsáveis pela defesa do organismo, além das plaquetas, responsáveis pela coagulação. Nem sempre a indicação de transplante é para quando existe leucemia... Nem sempre. Existe a indicação nos casos que eu falei, no caso de algumas anemias genéticas e em alguns tipos de tumores, de câncer. Mas não é necessariamente a primeira linha de combate ao câncer. O transplante é usado como consolidação do tratamento, para verificar e garantir que aquele câncer não retorne.
A questão da compatibilidade é o maior empecilho?
Sim. A medula óssea pode ser reconhecida como não sendo do indivíduo. Então é muito importante que se determine se aquele doador é a melhor opção para que a medula seja aceita pelo corpo do receptor. Diferente do transplante de órgãos sólidos, onde se transplanta um rim e o indivíduo pode reagir e rejeitar aquele rim, a medula é o próprio órgão que faz esse reconhecimento. Então, ela reconhece a pele, o fígado, a caixa intestinal, etc. Se não for compatível, a medula reconhece todos esses órgãos como não sendo do indivíduo e essa medula pode reagir contra o próprio indivíduo. Isso pode causar uma doença, chamada a doença do enxerto contra o hospedeiro. Então, os resultados do transplante com relação às complicações são menores quando o doador é compatível.
Se houver um grau de parentesco é mais fácil atingir essa compatibilidade?
A possibilidade de encontrar um doador compatível dentro da família, entre irmãos, é de uma em quatro. Ou seja, 25%. Porque o filho tem a genética do pai e da mãe. Mas existe a possibilidade de se encontrar doadores entre indivíduos que não são aparentados. Mesmo assim, esse transplante ainda é mais complicado do que se fosse entre irmãos.
Se a possibilidade mais alta é de 25%, quando se trata de irmãos, então a compatibilidade é difícil de se achar?
É, sim. Mas isso depende do número de doadores voluntários. Quanto maior for o número de doadores não-aparentados, maior será a chance de encontrar alguém compatível. Hoje, nos Estados Unidos, a possibilidade de se encontrar um doador compatível é de 80%. Ou seja, é bastante alta. Os bancos de doadores são muito grandes porque já existe uma conscientização das pessoas de que é importante ser voluntário. E não há nenhuma perda para os doadores. Você doa e não perde absolutamente nada porque a medula óssea se regenera. E como a doação pode ser feita através de sangue se tornou um procedimento muito mais simples sem a necessidade de cirurgia.
Esse outro método está disponível no Brasil?
O transplante não-relacionado e o de cordão umbilical já estão disponíveis no Brasil. O mais complicado é o transplante entre pessoas não aparentadas, dependendo do doador, porque pode haver complicações severas e de difícil tratamento.
A senhora participou da criação do Programa Nacional de Transplante de medula Óssea... Nós fomos um dos pioneiros na implantação do Programa no Instituto Nacional do Câncer. Esse trabalho que desenvolvemos por cinco anos no Rio de Janeiro criou uma plataforma de expansão do Programa para todo o Brasil. Até então, o paciente brasileiro que precisasse de um transplante teria que ir para o exterior para se tratar. Então houve a política de se investir nos profissionais que já tinham experiência no exterior e que poderiam aplicar essa tecnologia.
Qual era o ano?
1982. Essa é a data de criação do Programa do Centro Nacional de medula Óssea. E nós levamos em torno de dois anos para criar a estrutura técnica e profissional para fazer o programa. E o primeiro transplante de medula óssea foi em 1984. Foi uma paciente que tinha falência medular, não produzia nenhum sangue e esta paciente é hoje a mais longa sobrevivente de transplante no Brasil.
Como a senhora avalia a política nacional de transplante de medula óssea?
O sistema nacional é muito bom. Porque ele começou certo e sabendo que o transplante não é a cura para todos os pacientes e todas as doenças. Então, no Brasil, se criou uma política baseada na opinião dos especialistas e não dos políticos. De tal forma que hoje se faz no Brasil o transplante para aquelas condições onde existem os melhores resultados. O percentual de cura desse tipo de tratamento pode ser tão alto quanto 80% ou tão baixo como 20%. No Brasil, não se faz esse de 15% ou 20%, nas diretrizes do SUS, que é quem arca com os custos. Os resultados no Brasil são semelhantes aos de outros países de ponta no mundo.
E com relação ao banco de doadores?
Na questão do banco de doadores, o importante é a conscientização da população. É saber que doar é muito fácil e pode salvar vidas. O mais importante no Brasil é aumentar o número de pessoas que voluntariamente são doadores de medula, como são de sangue. O que não é muito simples, porque não há um comprometimento histórico e cultural com ser doador.
Nos Estados Unidos a possibilidade de se encontrar um doador é de 80%, como a senhora falou. E no Brasil?
No Brasil, eu não tenho esses dados consolidados, mas acredito que seja em torno de 30%. E o Brasil por ser um país muito miscigenado não tem grandes possibilidades de encontrar doadores compatíveis em bancos internacionais. Nos Estados Unidos, por exemplo, há dificuldade de conseguir doadores negros e latino-americanos porque a representação dessas pessoas nos bancos de doadores é pequena.
Em relação à pesquisa, o Brasil deve alguma coisa aos grandes centros?
Deve sim. As fontes financeiras de apoio e investimento para se fazer uma pesquisa, nos Estados Unidos, são muito grandes. No Brasil não existe ainda uma consciência e um compromisso das empresas privadas, por exemplo, em contribuir com a ciência. O Brasil ainda está na fase assistencial, naquela fase imediata. Mas o Brasil em algumas áreas está no mesmo nível que os Estados Unidos. A questão é que as fontes de fomento para produzir ciência ainda são muito limitadas. Nos Estados Unidos, existe o recurso federal, estadual, privado e principalmente filantrópico, de pessoas que doam dinheiro para se fazer ciência. No Brasil, tudo ainda é muito centrado no governo federal