segunda-feira, 22 de março de 2010

Diário do Pará

Domingo, 21/03/2010, 09:14h
Médico critica remédio dado a transplantados

O médico gastroenterologista Sérgio Mies, um dos maiores especialistas em transplante de fígado do mundo, afirma que a Secretaria Estadual de Saúde (Sespa) distribuiu “remédio de fundo de quintal” para centenas de pacientes transplantados de fígado, rim, coração e pâncreas do Estado.

Ele se refere ao medicamento Lifaltacrolimus, fabricado por um laboratório de Alagoas e entregue aos pacientes desde o ano passado. O remédio- sem qualquer explicação da Sespa-, deixou de ser fornecido durante 30 dias aos pacientes, que agora correm risco de rejeição do órgão e até mesmo de morte. Como se isso não bastasse, o Lifaltacrolimus sofre contestação da classe médica de vários estados, para quem não seria eficaz no combate à rejeição de órgãos transplantados.

“Eu nunca ouvi falar do Lifaltacrolimus, distribuído aos transplantados paraenses. Nos hospitais de São Paulo só se usa o Prograph que é o medicamento original”, declarou Mies ao DIÁRIO. Ele é professor do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e comanda a Unidade de Fígado do Instituto Dante Pazzanese. Mies ficou surpreso com o descaso dispensado pela Sespa aos transplantados do Pará.

Com a autoridade de ser o primeiro cirurgião a realizar transplante de fígado na modalidade intervivos (com doador vivo) no mundo, ele dispara: “O que acontece é que tem empresários que abrem um laboratório de fundo de quintal, pegam um apoio político, conseguem aprovação na Anvisa, colocam o preço mais baixo e saem vendendo por aí colocando a vida dos pacientes em risco”.

O conselho que dá aos transplantados é um só: “fuja disso. Não tome essas medicações de fundo de quintal. Você pode ter uma rejeição. Só tome os medicamentos receitados pelo seu médico”. Mies comanda a equipe que realizou o primeiro transplante de fígado no Brasil com sucesso, há mais de vinte anos. Desde então já fez mais de 1.000 transplantes, incluindo a doação entre pessoas vivas.

REAÇÃO

Mies conta que em São Paulo também houve tentativa do Estado de mudar a medicação dos pacientes. “Tivemos o caso do imunossupressor micofenolato mofetil (ou ácido micofenólico). Quiseram substituir o Myfortic que é o medicamento original, por outro similar mais barato, o Cellcept, mas nós não permitimos. Em outros estados ocorreu a mesma coisa. Acabamos conseguindo que fosse distribuído só o original. Em São Paulo só receitamos e distribuímos o medicamento original. A vida dos nossos pacientes não tem preço”, disse o cirurgião.

Desde 2007 no Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, realizando transplantes pelo Sistema Único de Saúde (SUS), Mies orienta uma equipe que é também uma das referências em tratamento de hepatite B e hepatite C, câncer de fígado e outros tipos de cirurgias. O jornalista e publicitário Walter Junior do Carmo relatou que em 2004, quando se submeteu ao transplante de fígado na modalidade intervivos-um irmão dele foi o doador-, foi Mies quem comandou a mesma equipe no hospital Albert Einstein.

“Ele se lembrou do fato, ontem, quando conversávamos”, observou Walter Junior. A cirurgia foi coordenada por Ana Olga Mies, uma das maiores especialistas mundiais em transplantes e tratamentos hepáticos.

>> Processo para garantir remédio

O jornalista e publicitário Walter Junior do Carmo, internado desde domingo passado em São Paulo, onde faz avaliações médicas, não consegue descrever a “expressão de espanto” da médica Michelle Harriz, da equipe da doutora Ana Olga Mies, ao contar a ela ter ficado quatro dias em Belém sem tomar o imunossupressor Tacrolimus, usado no combate à rejeição de órgãos transplantados. Junior foi submetido a transplante de fígado há mais de cinco anos e, a cada trimestre, precisa se deslocar para a capital paulista para fazer as avaliações no Instituto Dante Pazzanese.

Ao analisar os exames de Junior, a médica notou que as taxas do fígado estavam bastante alteradas, revelando uma inflamação no órgão. A taxa de Tacrolimus está em 1,4 ng/ml. O normal varia entre 5,0 a 20,0 ng/ml. Ou seja, o índice atual é insuficiente para evitar a rejeição do órgão. O detalhe é que o jornalista ficou “apenas” quatro dias sem tomar a medicação fornecida pela Sespa.

Perguntei para a médica o que aconteceria com uma pessoa transplantada que passasse mais de trinta dias sem tomar o imunossupressor. Ela respondeu que no caso do fígado a rejeição é inevitável”, relatou Junior. No Pará, 54 pessoas são transplantadas de fígado, segundo o presidente da Associação Paraense dos Amigos do Fígado (Apaf), Benedito Ferreira Almeida. A tentativa de recuperar o fígado requer a aplicação de uma medicação muito mais forte que o Tacrolimus para zerar o sistema imunológico.

Se por um lado os médicos conseguem salvar o órgão transplantado, por outro o paciente contrai centenas de infecções, porque o organismo fica completamente sem defesas. “O risco de morte é muito alto. Na maioria das vezes é necessário fazer outro transplante, mas as chances de o paciente resistir à espera pelo novo fígado são quase nulas”, diz Michelle Harriz.

LAUDOS

No caso de Junior, desde a última segunda-feira (15) a medicação foi reestabelecida. Logo após os exames, ele recebeu um lote de Prograph, o medicamento original com o princípio ativo Tacrolimus, que a Sespa se recusa em voltar a distribuir aos transplantados do Estado. A equipe que monitora Junior disse que durante os próximos três meses ele terá de seguir um tratamento específico, com reforço de outras medicações. Se o fígado não responder, terá de fazer uma biópsia e iniciar um tratamento mais intenso para combater a inflamação.

“Estou levando os laudos e vou entrar com duas ações judiciais contra o Estado do Pará: uma para garantir o fornecimento da medicação receitada pelos médicos, obrigação constitucional do poder público. E a outra será indenizatória, para reparar os transtornos que estou passando”, anunciou o jornalista. Ele sugere que todos os transplantados prejudicados pela Sespa tomem a mesma atitude.

ENTENDA O CASO

A Sespa passou todo o mês de fevereiro sem fornecer a substância ativa Tracolimus, que combate a rejeição de órgãos transplantados.

O medicamento Lifaltacrolimus, fabricado por um laboratório de Alagoas, voltou a ser fornecido no dia 12 de março passado aos pacientes, mas eles se recusam a tomá-lo, alegando efeitos colaterais como náuseas, tontura e insônia.

Os transplantados afirmam que o Prograf, remédio que tomavam antes de a Sespa suspender a compra do produto, em maio do ano passado, não causa os efeitos colaterais do Lifaltacrolimus.

Na sexta-feira, 19, a Sespa, depois de uma série de reportagens do DIÁRIO sobre o assunto, recuou e retirou de suas prateleiras o Lifaltacrolimus, adquirindo 40 mil caixas do remédio Prograf. Ela mantém o Litaltacrolimus “em quarentena” até que a Anvisa se manifeste sobre a eficácia do produto.

O promotor dos Direitos Constitucionais, Waldir Macieira, está reunindo provas para processar o Estado. Ele depende de laudos e pareceres médicos de especialistas, mostrando os prejuízos que a ausência do Tracolimus faz ao organismo. O fato dos pacientes terem ficado 30 dias sem o remédio pode ter provocado ao organismo ameaças de rejeição do órgão transplantado e risco de morte, principalmente no caso de pacientes de fígado.

Segundo exames feitos em São Paulo, o jornalista e publicitário Walter Junior do Carmo, transplantado do fígado, está com baixa quantidade de Tracolimus e apresenta inchaço no órgão. Ele ficou quatro dias sem tomar o remédio por culpa da Sespa. Junior promete processar o Estado e sugere que todos os transplantados paraenses façam o mesmo.