quarta-feira, 27 de outubro de 2010

diário de São Paulo

Batalha 24/10/2010 15h37
DIÁRIO acompanha a história de dez pessoas que precisam de transplante de fígado
Conheça a rotina de quem aguarda por um órgão
Fernanda Cirenza

Elas foram surpreendidas por doenças de nomes complicados e assustadores: ascite, encefalopatia, carcinoma, paramiloidose, cirrose, câncer.
O fígado dessas pessoas está comprometido, e elas precisam de um transplante para sobreviver. Vivem no aguardo de um telefonema do Hospital das Clínicas, em São Paulo, anunciando a morte cerebral de um doador.
A angústia é grande. "Dependo da doação de um cadáver", diz a cantora Debye Ventura Trombim, 47 anos. Debye é uma das mil pessoas que estão na fila do transplante de fígado do HC. O caso dela é delicado porque precisa também de um rim. Ela não sabe quando isso vai acontecer. Pela regra, os pacientes seguem para o transplante conforme a gravidade, e não pela ordem de chegada.

A situação da dona de casa Eunice Suely Consoloni, 61 anos, era grave. Ela ocupava o primeiro lugar na fila. Já tinha passado por um tratamento de combate a um tumor no fígado, mas dependia de um transplante para viver.
No dia 11 de outubro, ela disse à reportagem do DIÁRIO que estava na expectativa da operação, mas se sentia tranquila. "A gente nunca sabe o dia de amanhã. Tenho que confiar nos médicos e em Deus." Só que não apareceu um órgão compatível com o organismo de Eunice. Ela morreu no dia 18. Desde setembro, a reportagem faz visitas recorrentes ao HC na tentativa de acompanhar o drama de pacientes como Eunice e Debye. É no prédio dos ambulatórios que eles se encontram para receber medicação e orientação, além de trocar experiências.

São assistidos pelos médicos e por uma equipe de enfermagem, nutrição e psicologia. Adriana Cortez Rizzon é a coordenadora. Ela sabe quem é quem na sala de espera barulhenta do hospital e, não raro, faz cobranças. "Por que você não veio fazer o exame de sangue na semana passada?"

A partir de hoje, você vai conhecer a história de dez pessoas que estão na fila do transplante de fígado. Elas relatam como descobriram suas doenças, a reação que tiveram com a notícia e o que têm feito a partir dela. Daqui para frente, a reportagem vai estar ao lado desses pacientes até que uma solução para cada caso seja encontrada. A seguir, eles falam sobre seus dias nesta espera pela vida.

Um irmão morreu com a mesma doença
José Fernando Pereira de Oliveira, 24 anos, ajudante de motorista de caminhão
Ele tem hepatomegalia (fígado aumentado). Quando criança, fez tratamento com medicação e melhorou. O tempo passou, José Fernando virou adolescente e começou a beber cerveja todo fim de semana. Foi, então, que o problema se agravou. Ele começou a ter febre, dores abdominais e pneumonia. Há quatro meses, sofreu uma hemorragia digestiva e foi internado no Hospital Anchieta, em São Bernardo do Campo (SP). "Ele ficou mal", diz Solange Pereira de Oliveira, 42 anos, irmã do paciente. "Não dá para deixá-lo sozinho, porque a doença causa confusões mentais." Em tratamento no HC, ele não se queixa muito, apenas da dieta rigorosa que tem de seguir. "Nossa vida mudou. Adotei meu irmão como um filho", diz Solange. Na fila pelo transplante, ele espera por um telefonema do hospital. "Já perdi um irmão com esse mesmo problema. Ele tinha 25 anos", diz.

Bebida causou o problema
José Milton da Silva, 42 anos, motorista, descobriu que tem cirrose hepática há um ano. Está na fila do transplante há cerca de dois meses
Depois que se separou da mulher, José Milton começou a abusar das noites. A sensação de liberdade misturada à desolação amorosa foi a combinação perfeita para uma vida meio desregulada em termos de alimentação e bebidas alcoólicas. No fim do ano passado, o corpo de José Milton baqueou. Ele começou a inchar e tudo o que comia fazia mal. "Não tinha nem apetite e sentia muito cansaço." Pensou que eram sinais das noites mal dormidas. Mas, em dezembro, teve de ser internado às pressas no HC. José Milton se queixa das restrições que passou a ter no dia a dia. "Tomo remédios, vou ao hospital sempre e não posso comer carne nem sal." Às vezes, confessa dar umas escorregadas. "Meu fígado perdeu um pouco a potência. Só que ninguém é de ferro." Quando faz esse tipo de comentário na frente de Valdecy Miranda Barbosa, enfermeira da coordenação do transplante do HC, leva bronca. Morador de Cotia, na Grande São Paulo, José Milton se ressente da nova realidade. "Fiquei mais medroso com a doença. Não saio mais para dançar, namorar. Isso é meio chato", diz. Por outro lado, ele está tranquilo com a ideia do transplante. "Ele é o remédio para a cura da minha doença."

A dúvida é algo torturante
Célia Maria Queiroz Santiago, 61 anos, ex-enfermeira, teve um diagnóstico de câncer em maio e desde então está na fila do transplante
Baiana de Cruz das Almas, Célia carrega um sotaque nordestino gostoso e três nódulos nocivos no fígado. Antes de descobrir a doença, submeteu-se a um teste gratuito para o diagnóstico de hepatite C. Deu positivo. Era uma iniciativa de um laboratório farmacêutico, que a encaminhou para outro de exames clínicos para a contraprova. O resultado, então, foi negativo. "Eu sosseguei, até porque não sentia nada. Ainda não sinto, aliás", diz. Depois de uns seis meses, durante uma madrugada, Célia acordou indisposta, sentindo-se pesada, inchada. Foi então que teve a primeira hemorragia digestiva. Levada para o Hospital Penteado, na Zona Norte, passou cinco dias internada. Eram varizes no esôfago, mas o médico deu um sinal de alerta. Célia precisava investigar. De lá, foi para o HC, para uma série de avaliações, até receber a notícia dos tumores. "Foi um choque violento. Quando o médico diz que você tem câncer, é assustador." Ela está em tratamento para conter o progresso dos nódulos no Instituto do Câncer e há quase seis meses espera por um fígado bom. "Meu desejo é que tudo seja rápido. A dúvida se vai dar certo ou não é torturante."

Ele tem cirrose mas só bebia socialmente
Altemar Linton de Oliveira, 47 anos, comerciante, descobriu a doença no ano passado
Em 2009, Altemar se sentiu mal e foi para um pronto-socorro perto de casa, em São Miguel Paulista, Zona Leste. Foi encaminhado para um hospital da região, mas também lá não houve diagnóstico preciso. Recebeu só medicação. Uma semana depois, à noite, começou a ficar agitado. A mulher, Alice, achou estranho, mas pensou que era efeito dos remédios. A sorte foi que Alice acreditou em sua intuição e, no dia seguinte, levou o marido ao hospital. Não deu outra: Altemar havia tido uma crise de encefalopatia, uma confusão mental - como se a pessoa estivesse drogada? devido a complicações hepáticas. Altemar tem cirrose criptogênica (causa desconhecida). "Bebia socialmente, nada abusivo", ele diz. Alice confirma. Como o problema pode ser hereditário, os filhos do casal, de 19 e 13 anos, também serão investigados. É uma atitude preventiva. "Se eles tiverem alguma indicação, que comecem a se tratar desde já", diz o pai. A vida da família mudou radicalmente. O negócio, um açougue, está na mão de um cunhado e de funcionários. "Quando acontece uma coisa dessas, todo mundo adoece junto."

Mais um transplante, sem perder a alegria
Debye Ventura Trombim, 47 anos, cantora, tem câncer e está à espera de um fígado e de um rim
Aos 18 anos, Debye perdeu os dois rins em decorrência de uma pielonefrite (infecção do trato urinário). Sobreviveu à custa da doação de um dos rins do pai, José Maria Trombim. Deu tudo certo e, por anos, viveu sem preocupações. Depois de outros 18 anos, o rim transplantado começou a dar sinais de rejeição. Foi nessa ocasião, em meio a exames, que ela descobriu também uma hepatite C, possivelmente adquirida numa transfusão de sangue. "Meu mundo desabou. Essa doença tem progressão rápida." A hepatite de Debye evoluiu para cirrose e, por fim, para um câncer. Por um tempo, manteve a saúde à base de medicação. Mas já faz quatro anos que obrigatoriamente precisa se submeter três vezes por semana à diálise. "Fico ansiosa, porque vai ser uma cirurgia de grande porte e de riscos. Eu já assinei um documento em que afirmo estar ciente dos problemas que ainda podem acontecer, como a rejeição dos órgãos e, na pior das hipóteses, morrer." Enquanto aguarda por um chamado, Debye leva a vida cantando. Ela anima casamentos e eventos corporativos ao lado do pai, que é militar aposentado e pianista. "Mesmo com as limitações, procuro me divertir para celebrar a vida."

O cardiologista virou paciente
Murilo Mendes Soares, 59 anos, cardiologista, descobriu um tumor há dois anos
Em 2001, Murilo vomitou coágulos de sangue. Em um hospital, foi tratado e achou que levaria a vida à base de dietas e remédios. Mas, no ano retrasado, teve hemorragia digestiva e foi internado mais uma vez. Foi duro. "Eu tinha comprado passagens para a Europa para mim e para a minha mulher. Era a nossa primeira viagem para lá." De volta, Murilo começou a apresentar sintomas estranhos: ascite (retenção de água nas pernas e no abdômen) e encefalopatia (função cerebral alterada). Foi levado para uma consulta no HC e o diagnóstico foi claro: um nódulo no fígado. "Recebi umas substâncias para atacar o tumor. Ele diminuiu, mas ainda está lá." Há cerca de um mês, o celular de Murilo tocou. Era o pessoal do HC, avisando que havia um fígado. "Fui internado, vesti o pijama azul e coloquei até a pulseira no pulso. Mas os médicos avaliaram que aquele fígado não servia pra mim." Ele diz não estar muito ansioso para a cirurgia. Só não quer sofrer muito. "Procuro amenizar o problema. A coisa que mais me preocupa é a morte."

Uma década de luta e 16 quilos a menos
Augusto Gennari Neto, 51 anos, ex-empresário, luta há dez anos contra doenças hepáticas
O périplo de Augusto começou com uma hepatite C tratada à base de medicação. "Fiquei seis meses em tratamento, melhorei e fui liberado pelo médico." Mas a alegria durou só oito meses. Quando voltou a se tratar da mesma hepatite, descobriu que o fígado tinha descompensado. Mais uma bateria de tratamento e remédios. Há quatro anos, foi internado e entrou na lista dos transplantes. Mas se recuperou. Recebeu alta e uma boa notícia: já podia viver com o próprio fígado. Por dois anos, levou uma vida comum, embora com limitações. Só que o fígado dele não resistiu. A hepatite evoluiu para uma cirrose que virou um câncer. Está novamente à espera de um doador. Evidentemente abatido, 16 quilos mais magro, Augusto está sempre no HC para fazer os controles. Pai de três filhos, ele luta por mais uma chance para a vida.

Apavorado, sem medo de admitir
Luiz Cesar Pedroso Eusébio, 55 anos, comerciante, há dois meses na fila do transplante
Há três anos, o gaúcho de Porto Alegre Luiz Cesar sofreu uma cirurgia para tratar de uma úlcera perfurada. Ele achava que era um procedimento simples e que, depois de alguns dias, estaria em casa. Enganou-se. Do hospital da Universidade de São Paulo, seguiu para o HC para um tratamento à base de quimioterapia. Foram cinco sessões para conter nódulos no fígado. "Todos sumiram, e eu não sinto nada." Mas o fato é que ele tem um carcinoma hepático. Meio inconformado com o problema, ele justifica: "Nunca tive uma doença desse tamanho." Ele está apavorado com o dia da cirurgia. "Até agora, não me chamaram. Mas eu tive que assinar um documento em que afirmo que sei de todas as coisas que podem acontecer comigo na mesa de operação. Posso ter uma infecção, pegar sífilis, Chagas. Posso morrer de qualquer coisa."

A barriga fica enorme por causa da doença
Joaquim Carlos Serra Coser, 56 anos, prestador de serviços, doente desde 2004
O primeiro encontro de Joaquim Carlos com a reportagem do DIÁRIO foi no HC. Ele fazia drenagem para esvaziar a barriga. Ele tem cirrose e sofre de ascite (edema na região do abdômen). Por isso, não arruma posição na cama na hora de dormir. "Eu bebia todos os dias." Está arrependido? "Arrependido não. Mas a gente nunca acha que as coisas vão acontecer." Não raro, Joaquim sente falta de ar. Tem ainda crises recorrentes de encefalopatia. "Meu corpo não consegue mais liberar as toxinas dos alimentos. Então, se excedo um pouco, a encefalopatia ataca. Fico confuso, fora de mim." Ele soube da doença em 2004, quando começou a se tratar. "Recebi a notícia sem grande espanto porque não sentia dor. Achava que ia tomar remédios e pronto." Mas não foi bem assim. O organismo começou a dar outros sinais de alerta. Hoje, ele toma oito comprimidos por dia. Além disso, está com duas artérias comprometidas. Na semana que vem, ele volta ao HC para mais uma sessão de drenagem. "Minha barriga está enorme."

Ela tem um problema genético
Cristiane Aparecida de Moraes, 35 anos, funcionária de uma escola, tem um mal crônico, progressivo e mortal Mãe de Sofia, uma garotinha de 3 anos, Cristiane sofre do que os médicos resumem por PAF (Paramiloidose Familiar), um mal genético, mortal, crônico e progressivo. "Só soube da doença quatro meses atrás. Mas faz quatro anos que investigo o que tenho", diz. Ela passou por vários médicos antes do diagnóstico. Perdeu peso, tem diarreias e não sente as pernas. "Vivo em outra realidade, mas não penso muito para não morrer antes da hora." Tudo o que ela quer é condições de ver a filha crescer. "O transplante é um risco. Mas preciso ter coragem."