quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

AIGA BRASIL

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Dr.Sócrates morreu. E eu com isso? Ele bebia, eu não bebo.
Caro leitor,

Abaixo correspondência enviada hoje (12.12.2011) à coluna do Leitor na Folha de São Paulo. Encaminho para uma reflexão. Ela remete à cirrose. Como todos sabem, cirrose é o final comum das doenças graves do fígado, inclusive causadas pelo álcool. Nesse estágio, as células do fígado são substituídas por tecido fibroso, em larga, e crescente, escala. Conseqüentemente a função hepática vai embora, as complicações aparecem: hipertensão portal (ascite, hemorragia digestiva alta, hérnias umbilicais), encefalopatia, alterações nos exames de sangue (coagulação, eletrólitos, renais, proteínas) e o temível hepatocarcinoma, além da perda contínua de uma vida digna.

Nem todos os leigos sabem, mas, você, a quem dirijo esse texto, membro das ONGs, sabe que a hepatite C hoje é a principal causa da cirrose. Sabe ainda que os números não param de crescer: casos diagnosticados, complicações, transplantes e mortes. O único número que não cresce na velocidade que devia é o do diagnóstico, o do acesso à terapia, o do alerta (qual é a cara da hepatite C?). E agora alguns colegas investidos em posições transitórias de relativa representatividade e alguma liderança tentam convencer seus pares a "esperar um pouquinho" pelas ações do governo na oferta e distribuição de novas terapias para hepatite C.

Bem, não quero ser repetitivo. E também não acredito que esse "pouquinho será realmente pouquinho". tratar.
O histórico de incorporação, principalmente para hepatite C, é moroso. Já expus minha opinião de forma clara e ela é diametralmente oposta a esses "conselhos". Eu acho que é anti-ético não tratar com o que há de melhor um paciente que precisa de terapia e tem uma doença avançada. E, se a doença não é tão avançada mas, ainda assim demanda terapia, não é anti-ético mas anti-econômico não
Inúmeros estudos farmacoeconômicos, inclusive independentes, como o estudo recentemente apresentado dos Veteranos do Vietnã nos EUA (AASLD 2011), demonstram claramente que é custo-efetivo tratar com Inibidores de Protease. Em outras palavras, comparar tratar quem precisa a não tratar ou tratar com interferon peguilado e ribavirina apenas, custa mais que o uso do inibidor de protease. A maior eficácia dos inibidores (que são "mais caros") reduz os custos das complicações e resulta em mais cura e maior qualidade de vida e, MENORES CUSTOS TOTAIS. Ou seja, é custo-efetivo (até em modelos adaptados ao Brasil).

Voltando ao Sócrates. Ele bebia, ok. Mas ele tinha cirrose, via final comum das doenças de fígado. O fato é, em quanto tempo ele morreu desde a primeira notícia da hemorragia? Será que, caso ele fosse um portador de hepatite C com cirrose ele "poderia esperar umas semanas" para tratar? Quando aparece uma complicação?
Um câncer no fígado, uma descompensação infecciosa, uma hemorragia, uma ascite?? Isso é matemático ou, com alguma freqüência nos surpreende (eu, na minha prática médica de quase 20 anos, nunca vi tanta cirrose descompensando como agora. Parece que aos meus colegas isso também é rotina, nesses tempos) ?
O Hepatology acaba de publicar um artigo em que se recomenda rastrear o câncer de fígado a cada três meses, ao invés de seis meses. Ou seja, podemos detectar um câncer de fígado em um período tão curto quanto três meses. Tivesse eu cirrose, ficaria eu esperando, ou iria à luta? Eu iria a luta, e colocando-me no lugar dos meus pacientes, vou à luta. Ora, dirão, o tempo é relativo. Sim, é relativo. Depende de que lado da mesa você está. Se na cadeira do gestor/médico, ou na do paciente. O tempo voa na cadeira do paciente. O tempo é parceiro na do gestor e de alguns, felizmente, poucos colegas médicos.
 
Já se foi o tempo em que poderíamos ter planejado uma mega política de atenção às hepatites virais. Agora a hora é de agir. Nada contra planejar, mas, em paralelo, se somos contra a judicialização (que salva vidas e equilibra as coisas para o lado mais fraco, o paciente), que atuemos com presteza para, de imediato, disponibilizar - nos centros universitários e aos pacientes que já tem acesso a todas as ferramentas de monitoramento e cuidados - acesso aos melhores medicamentos. Mas não é fácil. Sim, não é. Mas é possível. O tempo que se perde desconstruindo, desagregando, fomentando a não busca por seus direitos constitucionais, fosse dedicado à busca de soluções certamente já teria sido suficiente para termos hoje pelo menos alguns pacientes sob terapia e uma política de inclusão, não de exclusão.

Não acredito que a primeira geração dos Inibidores de Protease seja perfeita. Não são, mas são a melhor terapia de agora e dos próximos 3 a 5 anos (tempo em que novas terapias chegarão ao efetivo uso clínico). Também não apregôo a terapia indiscriminada. Longe disso. Mas, eu, outros colegas e todos os Serviços de Assistência já em condições de tratar, devem ter acesso e direito a tratar seus pacientes com o que julgamos (EMBASADOS PELA LITERATURA CIENTÍFICA E COM AUTORIZAÇÃO DA ANVISA, QUE É O QUE NOS BASTA!) o melhor, mais eficaz e custo-efetivo no momento. E, vou além, isso é só o começo. Em alguns anos mais e mais medicamentos baterão à nossa porta. Portanto, devemos ter uma política de incorporação objetiva. A cirrose não nos permite dar um tempinho. Essa é a grande lição que publicamente o Sócrates dá aos nossos gesto res do momento, aos médicos e aos pacientes. Tempo importa!
 
Não é fácil.Não, não é! Mas é o que deve buscar o gestor que, afinal, sempre tem a opção de não ser gestor. Mas, em sendo, no caso da hepatite C a atuação deveria ser outra, mais pró-ativa e célere.
 
Prezados, não tenho todas as respostas, não sou, evidentemente, o dono da verdade. Mas, agradeço ao Sócrates pela oportunidade de dividir com vocês essa reflexão e, oxalá, o governo também reflita e os meus colegas idem. Espero que mais colegas juntem-se a essa minha posição de forma pública. Vivemos um momento decisivo. Vidas serão salvas, ou não. Depende apenas de nós sermos passivos, coniventes, ou, ao contrário, de nos aliar às evidências científicas, de valorizar a posição da ANVISA (que registrou rapidamente os dois IPs disponíveis) e de buscar políticas de acesso, públicas e privadas, ainda que com o apoio do nosso justo, imparcial e independente Poder Judiciário.
 
"A mídia foi farta acerca do ocorrido com o meu colega, Dr.Sócrates. Sabidamente o Sócrates possuía uma grande sensibilidade social. Por isso deu esse exemplo, morreu aos poucos, publicamente, da mesma morte de milhares de anônimos. Cirrose hepática! Esse enredo era nosso conhecido. Hemorragia Digestiva. Outra Hemorragia Digestiva e, finalmente, uma infecção letal. Ou realizaria um transplante de fígado, ou morreria. E morreu. Como milhares de brasileiros. Deixa a lição, cirrose hepática hoje é uma das principais causas de morte no Brasil e no mundo! Está crescendo de forma acelerada! Porém, diferentemente do caso Sócrates, é causada principalmente pela Hepatite C. A pergunta é, passada a comoção, efetivamente, enfrentaremos como se deve essa urgente causa das hepatites virais e suas conseqüências? Um corintiano ilustre, o ministro Alex Andre Padilha, poderia prestar essa homenagem ao ídolo e marcar esse gol de placa a favor do povo brasileiro. Do contrário, continuaremos a perder de goleada."

Evaldo Stanislau Affonso de Araújo
Evaldo Stanislau Affonso de Araújo, MD, PhD
Infectious Diseases Department, HC-FMUSP.
Av.Dr.Enéas de Carvalho Aguiar, 500 sala 12
Cerqueira César, São Paulo, SP, Brasil.
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Email: evaldostanislau@uol.com.br
Viral Hepatitis Laboratory/ LIM-47.
Médico Infectologista

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