Transplante de órgãos: aspectos jurídicos e humanitários
Você já conversou com seus familiares sobre
doação de órgãos? Já
disse a eles, claramente, se você é (ou não) um doador? Sabia que é deles
a escolha sobre doar ou não seus órgãos caso você venha a falecer?
A morte (e, por consequência, a doação de órgãos) é ainda um
assunto tabu na sociedade brasileira. As pessoas não gostam de falar sobre
isso. Mas a vida de milhares de pessoas que aguardam na fila por um transplante
depende desta simples conversa.
O sofrimento…
A lista de espera por transplantes de
órgãos e tecidos no Brasil está atualmente em torno dos 60 mil pacientes, de acordo com dados do Ministério da Saúde.
Recentemente, a equipe do JusBrasil recebeu o comovente
depoimento de um colega jusbrasileiro que passa pelo sofrimento de estar em uma
dessas filas de espera:
“Caros amigos do JusBrasil. Ocupo
este espaço para fazer um desabafo. Assim como uma flor que murcha, minha vida
está encurtando cada dia mais, em virtude de uma grave doença que tenho no
coração, na qual necessito de um transplante de coração, mas que até agora não
encontrei um doador.
É extremamente revoltante que o
governo priorize a copa com gastos exorbitantes, ao invés de priorizar áreas
como educação e saúde, pois enquanto nossos estádios estão lindos maravilhosos,
a nossos hospitais e escolas não passam de sucatas. Infelizmente se não há
investimentos em educação e saúde, a expectativa de vida dos brasileiros tende
a diminuir, pois no meu caso estou morrendo e não ha incentivo algum por parte
do governo em melhorar a estrutura dos hospitais e incentivar a doação de
órgãos para salvar vidas.
Desculpem-me amigos JusBrasileiros, mas eu precisava desabafar, pois eu
estou morrendo, e não ha mais nada a ser feito a essa altura do campeonato, não
ha como eu encontrar um doador compatível na longa fila de transplantes, eu sei
que vou morrer. Gamaliel Gonzaga”
É compreensível a revolta do colega, mas o maior entrave para o
aumento no número de transplante de órgãos no nosso país é, ainda, a
mentalidade das pessoas. É preciso reconhecer que o Brasil é
responsável pelo maior sistema público de transplantes do mundo, sendo que 95%
das cirurgias realizadas no País são feitas pelo SUS (Sistema Único de Saúde – fonte).
Dados da ABTO (Associação
Brasileira de Transplante de Órgãos) mostram que não
é a falta de estrutura, mas a negativa familiar o principal motivo para que um
órgão não seja doado no Brasil.
O número de pessoas na fila de
espera por transplante de órgãos caiu 40% nos últimos cinco anos, de acordo com
dados de 2.013 do Ministério da Saúde (fonte). Ainda de acordo com a mesma matéria, nos
últimos dez anos, o número de transplantes aumentou em quase 50% no Brasil
(7.556 cirurgias em 2003 e 15.541 em 2.013).
Por outro lado, infelizmente,
de todas as mortes encefálicas que ocorrem no Brasil, pouco mais da metade se
transforma em doação. O número de rejeição familiar cresceu de 41%, em 2012,
para 47% em 2013, ou seja, houve um retrocesso (fonte).
Pesquisas mostram que a
principal justificativa para decisão de não doar órgãos é o medo (fonte). Ainda, de
acordo com o nefrologista José Medina Pestana, a principal justificativa das
famílias para não doar órgãos é o fato de nunca terem conversado sobre o desejo
de doar (fonte). Por isso
campanhas de conscientização e desmistificação são muito importantes.
O que é transplante de órgãos?
De acordo com o portal do Hospital Albert
Einstein:
“Transplante é um tratamento que consiste na substituição de um
órgão ou de um tecido doente de uma pessoa (chamada de receptor) por outro
sadio, de um doador vivo ou falecido.”
No caso de doador de órgão
falecido, a retirada dos órgãos e tecidos só ocorrerá após o diagnóstico de morte
encefálica do
paciente (veja explicação sobre isso mais abaixo).
É importante destacar que o
diagnóstico de morte encefálica deve ser afirmado por dois médicos NÃO
participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a
utilização de critérios clínicos rigorosos. Só isso já torna muito difícil a existência
de fraudes (imagine que, para alguém “comprar” um órgão, seria
necessário corromper não apenas a equipe de transplantes inteira, como
também esses dois médicos que não estão relacionados com a equipe).
Além disso, é legalmente
admitida a presença de um médico de confiança da família do falecido no ato de
declaração da morte encefálica. Veja o que diz a Lei 9.434/97 (lei
que rege os transplantes de órgãos e tecidos no Brasil, com exceção do sangue,
óvulo e esperma):
“Lei 9.434/97. art. 3º A retirada post mortem de tecidos, órgãos
ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser
precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois
médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a
utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do
Conselho Federal de Medicina.
(…)
§ 3º Será admitida a presença de médico de confiança da família do
falecido no ato da comprovação e atestação da morte encefálica.”
O portal de transplantes do Ministério da Saúde define
morte encefálica da seguinte forma:
“É a morte do cérebro,
incluindo tronco cerebral que desempenha funções vitais como o controle da
respiração. Quando
isso ocorre, a parada cardíaca é inevitável.
Embora ainda haja batimentos cardíacos, a pessoa com morte cerebral não pode
respirar sem os aparelhos e o coração não bater, por mais de algumas poucas
horas. Por isso, a
morte encefálica já caracteriza a morte do indivíduo. Todo
o processo pode ser acompanhado por um médico de confiança da família do
doador. É fundamental que os órgãos sejam aproveitados para a doação enquanto
ainda há circulação sanguínea irrigando-os, ou seja, antes que o
coração deixe de bater e os aparelhos não possam mais manter a respiração do
paciente. Mas se o coração parar, só poderão ser doadas as córneas.”
Repare bem que nesses casos em
que é declarada a morte do cérebro, a pessoa só respira com a ajuda de
aparelhos e o coração só continuará batendo por pouco tempo. É a respiração
artificial o batimento do coração que mantém outros órgãos oxigenados,
permitindo que eles sejam utilizados para transplante.
Ou seja, morte encefálica, quando adequadamente diagnosticada, é morte.
Não é uma espécie de coma ou estado vegetativo. Não existe chance da pessoa com
morte encefálica recuperar-se (fonte). Além disso, é a hora de declaração da morte
encefálica que deve constar no atestado de óbito, e não a hora da retirada do
ventilador (fonte).
Mitos a respeito da doação e transplante de
órgãos
Existem muitos mitos e
desinformação a respeito da doação e transplante de órgãos que, infelizmente,
ainda influenciam negativamente as pessoas.
O portal da ABTO traz alguns desses mitos e procura
desmenti-los:
1) Se os médicos do setor de emergência
souberem que você é um doador, não vão se esforçar para salvá-lo.
Se você está doente ou ferido e foi admitido no hospital, a
prioridade número um é salvar a sua vida. A doação de órgãos somente será
considerada após sua morte e após o consentimento de sua família.
2) Quando você está esperando um transplante,
sua condição financeira ou seu status é tão importante quanto sua condição
médica.
Quando você está na lista de espera por uma doação de órgão, o
que realmente conta é a gravidade de sua doença, tempo de espera, tipo de
sangue e outras informações médicas importantes.
3) Necessidade de qualquer documento ou
registro expressando minha vontade de ser doador.
Não há necessidade de qualquer documento ou registro, apenas
informe sua família sobre sua vontade de ser doador.
4) Somente corações, fígados e rins podem ser
transplantados.
Órgãos necessários incluem coração, rins, pâncreas, pulmões,
fígado e intestinos. Tecidos que podem ser doados incluem: córneas, pele,
ossos, valvas cardíacas e tendões.
5) Seu histórico médico acusa que seus órgãos
ou tecidos estão impossibilitados para a doação.
Na ocasião da morte, os profissionais médicos especializados
farão uma revisão de seu histórico médico para determinar se você pode ou não
ser um doador. Com os recentes avanços na área de transplantes, muito mais
pessoas podem ser doadoras.
6) Você está muito velho para ser um doador.
Pessoas de todas as idades e históricos médicos podem ser
consideradas potenciais doadoras. Sua condição médica no momento da morte
determinará quais órgãos e tecidos poderão ser doados.
7) A doação dos órgãos desfigura o corpo e
altera sua aparência na urna funerária.
Os órgãos doados são removidos cirurgicamente, numa operação de
rotina, similar a uma cirurgia de vesícula biliar ou remoção de apêndice. Você
poderá até ter sua urna funeral aberta.
8) Sua religião proíbe a doação de órgãos.
Todas as organizações religiosas aprovam a doação de órgãos e
tecidos e a consideram um ato de caridade.
9) Há um verdadeiro perigo de alguém poder ser
drogado e quando acordar, encontrar-se sem um ou ambos os rins, removidos para
ser utilizado no mercado negro dos transplantes?
Essa história tem sido largamente veiculada pela Internet. Não
há absolutamente qualquer evidência de tal atividade ter ocorrido. Mesmo soando
como verdadeira, essa história não se baseia na realidade dos transplantes de
órgãos.
Gostaria de destacar o item nº
8 (religião). Eu não sei se a reposta dada pela ABTO a este item é correta,
pois não conheço todas as religiões e já ouvi muitas pessoas que se dizem
contrárias à doação de órgãos por motivos religiosos.
Entretanto, fundamentada na
doutrina cristã, posso afirmar que se você se recusa a ser doador de órgãos por
motivos pretensamente religiosos, repense seu posicionamento e lembre-se da
parábola do bom samaritano e das palavras de Jesus Cristo: “Fora da caridade
não há salvação”. Ser doador é um ato de caridade e solidariedade.
Ainda tem medo?
Como já mencionado, a lei torna
muito difícil a existência de fraudes. Além de ser necessário que dois médicos
não participantes da equipe de transplantem atestem a morte cerebral, a lei
prevê ainda diversas sanções penais (crimes) e administrativas, caso os
procedimentos sejam feitos em desacordo com a lei ou de forma fraudulenta.
Podem ser punidos tanto os participantes da equipe (médicos, enfermeiros, etc.)
quanto o estabelecimento de saúde (hospitais). As sanções incluem prisão (penas
que variam desde detenção de seis meses a dois anos nos crimes mais leves até
reclusão de 8 a 20 anos, no crime mais grave), multa e desautorização
temporária ou permanente de funcionamento.
Inclusive, é obrigatório que o
hospital mantenha em arquivo relatórios dos transplantes realizados, caso seja
necessária averiguação posterior do procedimento.
Lei 9.434/97, art. 3º, § 1º Os prontuários médicos, contendo os
resultados ou os laudos dos exames referentes aos diagnósticos de morte
encefálica e cópias dos documentos de que tratam os arts. 2º, parágrafo único;
4º e seus parágrafos; 5º; 7º; 9º, §§ 2º, 4º, 6º e 8º, e 10, quando couber, e
detalhando os atos cirúrgicos relativos aos transplantes e enxertos, serão
mantidos nos arquivos das instituições referidas no art. 2º por um período
mínimo de cinco anos.
Como faço para ser um doador de
órgãos? Devo fazer constar isto em meu RG?
Converse com a sua família
sobre o desejo de ser doador de órgãos, pois é a família que assina o termo
de consentimento autorizando o procedimento de remoção, nos
termos da Lei 9.434/97.
Lei 9.434/97, art. 4o.
A retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas para
transplantes ou outra finalidade terapêutica, dependerá da autorização do
cônjuge ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou
colateral, até o segundo grau inclusive, firmada em documento subscrito por
duas testemunhas presentes à verificação da morte.
No caso de menores de idade e
outras pessoas civilmente incapazes, retirada de órgãos e tecidos só será
realizada mediante autorização expressa de ambos os pais ou responsáveis
legais.
Lei 9.434/97, art. 5º.A remoção post mortem de
tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoa juridicamente incapaz poderá ser
feita desde que permitida expressamente por ambos os pais, ou por seus
responsáveis legais
Originalmente, esta lei previa
que a expressão “não-doador de órgãos e tecidos” deveria ser gravada na
Carteira de Identidade Civil (RG) e na CNH de forma que todos que não se
manifestassem neste sentido seriam doadores automaticamente (parágrafos do art.
4º). Era a chamada a lei de doação presumida. Esta previsão não existe mais,
pois os parágrafos do art. 4º foram revogados pela lei 10.211/2001.
Lei 10.211/2001, art. 2º As
manifestações de vontade relativas à retirada “post mortem” de tecidos, órgãos
e partes, constantes da Carteira de Identidade Civil e da Carteira Nacional de
Habilitação, perdem sua validade a partir de 22 de dezembro de 2000.
Por isso é tão importante
conversar sobre o assunto! Ainda que você seja, em seu íntimo, um doador de
órgãos, se sua família não souber disso, nada adiantará! É da família a decisão
final. Por isso, é muito importante que os parentes respeitem a vontade do
falecido.
Conclusão
Ainda que o Brasil
seja responsável pelo maior sistema público de transplantes do mundo e tenha
havido significativo progresso nesta área, notamos que ainda há muito a se
fazer, principalmente no que diz respeito à conscientização das pessoas na
forma de campanhas.
Encontrei diversas
campanhas de órgãos públicos a respeito da doação de órgãos (inclusive uma
ótima campanha do CNJ chamada “Doar é Legal”).
Entretanto, tudo muito tímido em comparação com a importância do assunto.
Não podemos
simplesmente aguardar, inertes, a ação do governo. Precisamos agir. Manifeste a
sua vontade de ser doador, converse com a sua família. Se você é parente de um
doador, respeite a vontade dele(a)!
Uma maneira
bastante eficiente de manifestar sua vontade de ser doador de órgãos é através
do Facebook, a rede social mais popular do Brasil. O Ministério da Saúde e o Facebook fizeram uma
parceria para incentivar a doação de órgãos. Para manifestar
sua vontade de ser doador de órgãos, siga estes passos:
1. Faça login em sua
conta no Facebook;
2. Clique em Evento cotidiano no topo da sua Linha do Tempo;
3. Selecione Saúde e bem-estar;
4. Selecione Doador de órgãos;
5.
Selecione o seu público e clique em Salvar.
E você, o que pensa sobre isso? Vamos
destruir este tabu conversando sobre o assunto? Convido você a expor sua
opinião nos comentários aqui no meu blog ou então no JusBrasil, onde também
postei este artigo. Comente, compartilhe, concorde ou discorde! Vamos
transformar os 47% de rejeição familiar que mencionei no princípio deste artigo
em 1%!
Aviso importante
Decidi incluir este aviso
porque alguns sites têm republicado meus artigos sem citar o endereço da
publicação original.
Este artigo foi postado originalmente no meu
blog e, posteriormente, no meu perfil do site JusBrasil e pode ser acessado a
partir dos seguintes links:
FONTE:http://alessandrastrazzi.adv.br/direito-civil/transplante-de-orgaos-aspectos-juridicos-e-humanitarios/