Luciana da Fonseca foi a primeira médica brasileira a realizar este tipo de cirurgia
Fernanda Aranda, iG São Paulo
Foto: Eduardo Cesar / Fotoarena
Luciana da Fonseca, em 1998, foi a primeira médica a coordenar um transplante. Na foto, ela acaba de operar um paciente cardíaco.
Em 1968, ano em que o médico Euclydes de Jesus Zerbini realizou o primeiro transplante de coração no Brasil, nasceu na zona rural de Minas Gerais a menina Luciana da Fonseca. Três décadas mais tarde, ela fez história na cardiologia brasileira, assim como seu mestre inspirador.
Luciana, aos 30 anos de idade, tornou-se a primeira mulher em território nacional a “orquestrar” um transplante cardíaco. Hoje, batalha para que o sexo feminino não seja mais exceção no comando das equipes que fazem este mesmo tipo de cirurgia.
“Eu fui a primeira em 1998 e, desde então, o mundo dos transplantes permanece majoritariamente masculino no Brasil”, diz a cirurgiã cardiovascular que atua no Hospital paulistano Beneficência Portuguesa.
“Este quadro precisa mudar porque já é sabido que as mulheres são maioria nas universidades médicas” – segundo o Conselho Regional de Medicina de São Paulo elas somam 52% dos alunos.
“Se a estatística não reverter nos centros cirúrgico, podemos ter falta de mão de obra em um futuro não tão distante assim”, avalia Luciana.
Até ser um “bendito fruto” entre os médicos do transplante de coração, Luciana “flertou” com a engenharia civil, achou a medicina clínica “um pouco chatinha” e ralou muito para olhar para maca, bisturi e luzes artificiais e ter a certeza absoluta de que ali era, definitivamente, o seu lugar.
No mês da Mulher, o iG Saúde faz uma homenagem a todas as médicas do Brasil por meio da história desta cirurgiã que, segundo a Sociedade Brasileira de Cirurgia Cardiovascular, pertence ao seleto grupo de 34 brasileiras que têm no currículo a especialização nesta área (são 815 homens).
Foto: Eduardo Cesar / Fotoarena Ampliar
Luciana já coordenou 23 transplantes. Espera realizar o 24º em um paciente de 2 anos
O início
Luciana não sonhou ser médica quando pequena, não deu injeção fictícia em suas bonecas e nem brincou de “curar” seus seis irmãos. A primeira memória que tem para justificar a escolha da profissão, na verdade, não é nada feliz.
“Meu pai morreu de insuficiência cardíaca quando eu tinha 15 anos. Na época, não pensava em carreira mas acho que ali a vontade de resolver um problema de saúde e prolongar a vida de alguém nasceu em mim”, lembra a médica hoje, aos 42 anos.
Nascida na cidade Coronel Pacheco, em uma família que não tinha condições financeiras de arcar com os estudos de todos os filhos, Luciana desde sempre soube que para fazer faculdade teria de custear seus estudos. Fazia curso técnico de edificações em Juiz de Fora, amava matemática e as ciências exatas, por isso, em 1986 e aos 18 anos, achou natural prestar vestibular para engenharia civil.
Passou em 10º lugar na Universidade Federal de Juiz de Fora, mas nem bem conseguiu dar a boa notícia para a mãe e já bateu de frente com a dúvida se aquela carreira era mesmo a que iria fazer para o resto da vida. “No mesmo dia em que fui aprovada, pensei que na verdade queria ser médica.” Em vez da universidade, ela fez matrícula no cursinho. Estudou por mais um ano e, em 1987, entrou em medicina na mesma universidade de Juiz de Fora e na mesma 10ª colocação.
Realização
Os três primeiros dos seis anos da graduação de medicina trouxeram muito aprendizado para Luciana da Fonseca mas, até então, ela não tinha encontrado nada que a realizasse completamente. “Adorava a faculdade, mas não me via atendendo em consultórios. Queria algo de solução mais imediata, mais certeira. Tudo parecia a longo prazo.”
Em 1992, ainda estudante, assistiu a uma cirurgia cardíaca e foi flechada certa, amor à primeira vista. “Me encontrei naquele ambiente”, lembra. Luciana definiu ali qual seria seu habitat. Residência médica escolhida, no ano seguinte ela foi a São Paulo especializar-se nos bisturis que consertam corações.
“Ao comunicar a minha família que seria cirurgiã cardíaca, ouvi de uma prima querida que, por não ser pediatra, não cuidaria dos filhos que um dia ela iria ter. Tempos mais tarde, ela engravidou e a sua filha nasceu com síndrome de down e um problema cardíaco congênito importante. Operei a menina e toda vez que encontro com ela, sadia e com o coração perfeito, tenho a certeza de que fiz a escolha certa.”
As cirurgias cardíacas, engenhosas, trabalhosas e longas, já haviam conquistado o coração da médica Luciana mas nada fazia pulsar tão forte como os transplantes de cardíacos que ela adorava assistir.
“Era admirável ver um órgão ser retirado de uma pessoa morta, olhar para ele em uma caixinha parado e colocar no peito de outro paciente, fazendo-o bater no ritmo certo. Era uma cirurgia que, de fato, trazia uma nova vida para alguém.”
Um belo dia, em 1998, Luciana que já havia participado de inúmeros transplantes foi escalada para ser a “maestrina” de uma operação. Seria a primeira mulher brasileira a comandar um transplante cardíaco. A paciente a ser operada, Edna, também era do sexo feminino. O coração doado, da mesma forma, saiu de uma mulher. Do lado de fora, uma menina, filha de Edna, esperava ansiosa pela recuperação da mãe que, se não transplantada imediatamente, não sobreviveria.
Pela primeira vez, um toque cor-de-rosa cobriu o mundo dos transplantes. “Terminamos a cirurgia e a equipe, toda muito jovem, bateu palmas, tiramos fotos, foi uma festa.”
Edna e os outros 22
Luciana encontrou Edna outras vezes e, de certa forma, Edna também sempre acompanhou Luciana nos 22 outros transplantes realizados pela cirurgiã.
“Não tenho nenhum ritual antes da cirurgia, mas antes de transplantar, lembro de cada paciente que já operei. Como são poucos, perto de todas as outras cirurgias cardíacas, sei o nome de cada um e também de suas histórias”, diz.
Entre estes 23 transplantados por Luciana, o 4º submetido à cirurgia, foi o único que torceu o nariz ao ser informado que uma mulher seria a responsável por conduzir um procedimento tão complexo de delicado.
“Quando me apresentei, lembro que ele disse que não queria que fosse eu. Pediu para que o José Pedro (da Silva cirurgião cardíaco renomado e na época só professor de Luciana) fizesse o transplante. Ele não disse que a recusa era pelo fato de eu ser mulher. Mas senti, não sei explicar como, que o preconceito era sexista mesmo.”
A médica ficou bem frustrada naquele dia. Mas concentrou-se na cirurgia. O paciente saiu da mesa de operação bem e não teve complicações, trajetória de 20 dos 23 transplantados por Luciana. “Tenho três pacientes que não saíram vivos da UTI após o transplante”, lamenta.
Apesar do índice de mortalidade ser baixíssimo em pacientes submetidos ao transplante de coração, a médica virginiana e perfeccionista lembra deles de uma maneira especial antes de orquestrar os bisturis. “Refaço passo a passo destas operações.”
Excetuando seu 4º paciente, Luciana não consegue lembrar-se de nenhum outro preconceito – ainda que velado. “Se existiu, passei batido.”
Coração e maternidade
De tanto mexer com o coração dos outros, foi na constância de estar em mesas de cirurgia que Luciana teve o seu próprio coração tocado. O professor e ídolo José Pedro da Silva – aquele mesmo requisitado pelo 4º transplantado por Luciana – ganhou contornos que foram além da admiração. Em 2001, virou marido da médica. Em 2008, pai do seu filho.
“Nós temos uma parceria muito bacana, tanto na profissão quanto no ambiente familiar. Não é uma divisão igual de tarefas, é um entrosamento que levamos para a vida”, diz – derretida e quase suspirando – a médica.
Depois de se tornar mãe, a rotina ficou ainda mais apertada e algumas mudanças na conduta médica foram sentidas.
“Sempre tive uma atenção especial com a família dos pacientes, mas isso aflorou depois da maternidade. Tenho mais consciência sobre as angústias das mães que esperam suas crianças do lado de fora do centro cirúrgico. Elas também fazem parte deste processo todo, precisam ser tratadas com muita consideração.”
Esta preocupação materna com seus pacientes, se tudo der certo, deve ser novamente despertada em breve. Um menino de apenas 2 anos, acompanhado pela médica, está na fila de espera por um coração e internado na UTI. Dedos cruzados para que o 24º transplantado por Luciana da Fonseca tenha o mesmo final feliz que a maioria dos que entrou para o currículo desta cirurgiã pioneira no Brasil.