País
Publicação: 6 de janeiro de 2015
Especialista em hepatologia alerta que estudos estão sendo desviados para outros países devido à “morosidade burocrática do regulatório”; ele espera que Anvisa e Conep tenham sensibilidade para resolver a questão.
A demora da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) para liberar protocolos tira a competitividade do Brasil em relação aos estudos para novas drogas no combate à hepatite C. Os protocolos são estudos multicêntricos internacionais que avaliam novos medicamentos. Antes, eram conduzidos unicamente na Europa e Estados Unidos, mas agora são também desenvolvidos em outros países, incluindo os sul-americanos.
Quem alerta é o chefe do Serviço de Gastro-Hepatologia do Hospital Universitário da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Dr. Raymundo Paraná, em entrevista à Sociedade Brasileira de Medicina Tropical.
Abaixo, veja a entrevista na íntegra.
SBMT: Como o sistema público de saúde brasileiro tem lidado com os pacientes com a doença?
Dr. Paraná: O sistema público de Saúde do Brasil tem feito esforços para implantar um programa nacional de combate de enfrentamento das Hepatites Virais. Embora os esforços tenham sido constantes, e mais recentemente orquestrados com as sociedades de especialidade, ainda temos grandes desafios.
A expectativa é que tenhamos dois milhões de portadores do vírus C no País, mas menos de cem mil se encontram reconhecidos pelo serviço público de saúde. Enquanto persistir essa situação, nenhum tratamento de elevada eficácia mudará a realidade epidemiológica da hepatite C no País. O que acontece atualmente é que não conseguimos diagnosticar a doença e não temos um programa de rastreamento correto.
A Sociedade Brasileira de Hepatologia recomenda hoje que todos os profissionais médicos solicitem o teste anti HCV e todos os pacientes se submetam a este rastreamento se tiverem mais do que 45 anos. Os estudos epidemiológicos têm demonstrado que acima dessa faixa etária a prevalência chega a 3%. Esta estratégia já foi adotada em outros países, incluindo a França e os Estados Unidos onde a taxa diagnosticada é muito superior a nossa.
Outro grande desafio é ampliar os centros para acompanhar esses pacientes. Outro grande desafio é ampliar os centros para acompanhar esses pacientes. São pouquíssimos centros no Brasil, a maioria deles, inclusive, não possuem hepatologistas. Um esforço muito grande para atrair infectologistas e colegas da Medicina Tropical foi realizado na Região Norte com sucesso. Talvez seja esse um modelo a ser aplicado em outras áreas do País atraindo clínicos e gastroenterologistas para que possam lidar com essa doença não só no tratamento, mas principalmente no diagnostico e na avaliação pré-terapêutica.
SBMT: O Brasil tem contribuído para o desenvolvimento de drogas para o combate à hepatite C?
Dr. Paraná: O Brasil tem participado de diversos estudos multinacionais de fase II e III para as novas drogas com hepatite C. O nosso Centro em Salvador participou dos estudos nas primeiras ondas de IPs com o Telaprevir. Por outro lado, o nosso sistema regulatório é um sério problema que não conseguimos resolver. O sistema regulatório na Anvisa e na Conep tem demorado muito para liberar os protocolos, fato que tira a competitividade em relação a outros países, sobretudo os países latino-americanos. Assim, Chile, Argentina e México que possuem serviços menos organizados do que os nossos têm sido contemplados com os estudos multicêntricos internacionais, enquanto nós lamentamos a perda de diversas propostas. Os estudos multicêntricos internacionais de Fase II e III só nos trazem benefícios. Inicialmente, atraem recursos para o nosso centro de pesquisa. Paralelamente, ajudam a formar equipes, a melhorar o prontuário e, sobretudo, beneficiam diversos pacientes que se encontram em fases avançadas e que não poderão esperar os tramites de registro da droga para o tratamento.
Esperamos que a Conep e a Anvisa tenham a sensibilidade para resolver essa situação. Todavia, entendo que todo o cuidado é pouco no que se refere à ética. A concentração desses estudos em centros de referência e a monitorização frequentes dos mesmos resolveriam o problema, dando ao País competitividade para atrair esses estudos que estão sendo desviados para outras nações em função da nossa incompetência interna.
SBMT: Há avanços nas pesquisas em relação à doença que possam oferecer medicamentos mais baratos a pacientes?
Dr. Paraná: A redução do custo do tratamento é uma questão de tempo. Os tratamentos atuais já oferecem chances de cura que variam de 80 a 95%, a depender do estágio da doença e do genótipo viral. Outros medicamentos estão chegando para competir com os atuais e isso seguramente reduzirá o preço. A indústria também tem negociado de maneira diferente com diferentes países a depender do volume da conta e também do Produto Interno Bruto (PIB) da renda per capita. Assim, o preço nos Estados Unidos, onde a medicação é coberta pelos planos e seguros de saúde, é o maior do mundo, seguido da Europa, onde o sistema previdenciário reembolsa o paciente. O Egito teve uma excelente negociação com o custo menor do que 10% daquele aplicado nos Estados Unidos (um acordo feito este ano entre a Gilead, fabricante do Sofosbuvir, e o governo egípcio vai possibilitar o tratamento de três meses com o remédio por cerca de US$ 300 por mês por paciente). O Brasil também teve uma excelente negociação com valores intermediários ao Egito e à Europa.
Este jogo de xadrez nas negociações tem sido muito bem desenvolvido no nosso País em função do aprendizado que tivemos no combate ao HIV.
SBMT: Os medicamentos para o tratamento da hepatite C são extremamente caros. Há alternativas mais acessíveis aos mais pobres?
Dr. Paraná: Seguramente quando tivermos um universo mais amplo de medicações oferecidas, teremos várias opções de combinações terapêuticas. Todavia, neste momento, os medicamentos que dispomos já registrados nos seus países de origem são o Sofosbuvir, o Daclatasvir e o Simeprevir e, mais recentemente, o Ledispavir. A negociação para ampliar o acesso aos países mais pobres dependerá de uma intermediação da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e da Organização das Nações Unidas (ONU), como também da competência dos governos.
De qualquer maneira, o grande problema da hepatite C no Brasil e, sobretudo na Ásia e África, é a falta do diagnóstico. Os pacientes não são diagnosticados precocemente, portanto quando o diagnóstico acontece a doença já está numa fase avançada. Isso explica o motivo do Brasil ter cerca de 70% dos pacientes com Carcinoma Hepatocelular (câncer de fígado) associados à hepatite C. Explica também a hepatite C ser a indicação de mais de 50% dos transplantes de fígado neste País, assim como ser responsável pela contínua elevação da taxa de mortalidade por doenças hepáticas terminais no Brasil e em muitos outros países.
O nosso grande desafio é ampliar o diagnóstico e, para tanto, temos que mobilizar toda a classe médica para que solicitem o anti-HCV em todos os pacientes acima de 45 anos. Temos que liderar campanhas na mídia como foi feito para o HIV e, sobretudo, atrair mais colegas que possam trabalhar nos centros de referência para acompanhamento de pacientes com Hepatites Virais.
SBMT: A Anvisa recebeu pedido de urgência para avaliar novos remédios para o combate à hepatite C. São eles: Sofosbuvir, Daclatasvir e Simeprevir. Qual a sua avaliação sobre a utilização dessas novas drogas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), caso sejam aprovadas?
Dr. Paraná: Esses medicamentos trazem consigo uma mudança de paradigmas no tratamento da hepatite C. Além de simplificarem o esquema terapêutico, reduzem em muito os efeitos adversos, o que acaba permitindo o manejo desses pacientes em centros de referência menos complexos. Assim, trazem elevadas chances de cura, baixa complexidade e ampliação do espectro de pacientes que podem ser tratados, uma vez que mesmo os pacientes com a doença avançada se beneficiem com esses medicamentos.
Fonte: http://sbmt.org.br/portal/pesquisas-em-hepatite-c-burocracia-tira-competitividade-do-pais/?locale=pt-BR