domingo, 13 de setembro de 2009

ÚLTIMO SEGUNDO

Falta de médicos capacitados impede aumento da doação de órgãos no País
12/09 - 11:11 - Lecticia Maggi, repórter do Último Segundo

SÃO PAULO – De cada seis potenciais doadores de órgãos no Estado de São Paulo apenas um é identificado, segundo dados da Secretaria Estadual de Saúde. Ao contrário do que se possa imaginar, o aumento da doação de órgãos não acontece por resistência das famílias, mas pela falta de preparo dos médicos em identificar os possíveis doadores.

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Boni defende investimentos em hospitais
“Hoje, aproximadamente 70% das famílias autorizam o transplante. Mesmo em um momento de luto, as pessoas são extremamente solidárias”, afirma Sonia A. Coria, da Central Estadual de Transplantes.
Segundo informações da Secretaria de Saúde, o Estado de São Paulo registrou um crescimento de 61% na doação de órgãos de janeiro a agosto de 2009 frente ao mesmo período de 2008. Foram 430 pessoas que tiveram pelo menos um dos órgãos aproveitados, contra 266 do ano anterior.
O número ainda pode aumentar substancialmente nos próximos anos. Mas, para isso, segundo especialistas ouvidos pelo Último Segundo, é preciso investir na formação dos profissionais da área de saúde.
Para os profissionais, mais do que investir em grandes campanhas midiáticas de conscientização o governo deve priorizar a formação dos médicos.

A falta de critérios é o principal empecilho para o crescimento. “Temos muitas notificações [avisos de órgãos para doação], mas que são contraindicadas assim que chegam porque os médicos simplesmente acham que não servem”, critica Reginaldo Carlos Boni, coordenador da Central de Transplantes do Estado e diretor de captação de órgãos da Santa Casa de São Paulo. “Alguns médicos chegam a dizer às famílias para não doar porque é complicado”, acrescenta.

Segundo Boni, ainda há resistência no diagnóstico da morte encefálica – que permite a doação do maior número de órgãos – porque, culturalmente, ela não é bem aceita na sociedade. Pelo fato do coração bater, acredita-se que o paciente esteja vivo. “O cérebro morreu, mas o paciente continua quente, corado. É difícil para a família entender”, acrescenta Leonardo Borges, Coordenador da Organização de Procura de Órgãos do Hospital das Clínicas.

A Finlândia foi o 1º país a reconhecer a morte encefálica como outra morte qualquer, em 1977. No Brasil, porém, apenas com a resolução 1480, de 1997, a morte encefálica foi equiparada à morte clínica.

Segundo Borges, o assunto precisa ser tratado com mais rigor também nas universidades. “Os alunos têm aula de morte encefálica, mas não entendem o processo como um todo”, diz. “É essencial que eles saibam como funciona do início ao fim - desde o diagnóstico, até a entrevista familiar e o transplante”, afirma.

“Tivemos que correr atrás”

Arquivo
Luciene doou órgãos do filho MatheusA falta de profissionais preparados para atender essa situação não é um problema só do Estado de São Paulo. A secretária Luciene Aparecida Lajes, de 28 anos, de Belo Horizonte (MG), conta que teve dificuldades para doar os órgãos do filho Matheus Henrique, de 8 anos, que morreu após um acidente de carro em março de 2007.

“Depois que aceitei a doação, ninguém nos deu atenção. A gente que tinha de ligar para saber como estava o processo”, afirma ela, explicando que seu filho morreu em uma terça-feira e os órgãos só foram retirados na madrugada de quinta-feira.

Mesmo assim, ela diz que não se arrependeu do ato e aconselha outras famílias a tomar a mesma decisão. “É muito difícil fazer isso em um momento de perda, mas deixar que seis pessoas renasçam é uma forma de acalento”, diz. “Hoje, sei que tenho seis filhos espalhados por esse mundo”.

"É uma covardia culpar a população pela falta de gestão pública”

Crescimento das doações
O Estado de São Paulo realiza cerca de 50% dos transplantes de todo o País, conforme a Secretaria de Saúde.
A média de doações no Estado é de 16,8 doadores por milhão de habitantes. Se considerados apenas os municípios da Grande São Paulo, este número sobe para 28 doadores por milhão. A região está bem à frente da média nacional, que no primeiro semestre de 2009 foi de 8,6 doadores por milhão de população, segundo a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO). São Paulo ultrapassou inclusive Santa Catarina, tido como Estado modelo na doação de órgãos, que atingiu 16,8 doadores por milhão de população.

Reginaldo Boni afirma que na Santa Casa de São Paulo a meta é chegar a 40 doadores por milhão. O segredo para isso: capacitar os profissionais. “Não podemos ficar na dependência da vontade do médico em identificar o potencial doador. O indivíduo tem que ser pago para essa função”, defende.

É exatamente a recente criação do cargo de coordenadores intra-hospitalares de doação - onde um profissional é destacado para auxiliar na identificação e notificação do potencial doador – que a Secretaria de Saúde atribui como fator principal para o aumento das doações.

Criado em maio, o projeto “Doar São Paulo” garante remuneração extra de R$ 4 mil a estes profissionais, que passam por cursos de 3 dias de especialização.

Eles são indicados pela diretoria dos hospitais, que, por sua vez, são escolhidos com bases em dados demográficos. Atualmente, há 31 hospitais que contam com este tipo de serviço.

Campanhas X treinamento
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Dr. Antón fala sobre sucesso espanhol
Para os profissionais, mais do que investir em grandes campanhas midiáticas de conscientização o governo deve priorizar a formação dos médicos. “Dizer na TV seja doador não funciona”, critica Borges. É preciso, segundo ele, primeiro explicar à população o que é morte encefálica, para que não conheçam o termo somente na hora de um sofrimento extremo.

O coordenador hospitalar também pode desempenhar um papel educacional. “A população não pode andar na frente dos médicos, senão chega uma família em um hospital sem assistência e vive a verdadeira condenação do processo: ‘eu queria doar, mas não consegui’”, critica Joel de Andrade, coordenador da Central de Transplantes de Santa Catarina, acrescentando que é uma “covardia culpar a população pela falta de gestão pública”.

Boni, da Central de Transplantes de São Paulo, partilha da mesma opinião dos demais médicos: quando o recurso é escasso, deve ser priorizado. “O dinheiro público tem que ser bem aplicado e hoje, fundamentalmente, precisamos dele nos hospitais”.

Quanto o assunto é doação, a solidariedade não é o essencial, é complemento

Modelo a ser seguido

Criada em 1989, a Organização Nacional de Transplantes (ONT) da Espanha permitiu que o País saltasse de 14 para 35 doadores por milhão. Hoje, é o primeiro do mundo em doação de órgãos, com cerca de 70 mil transplantes todos os anos.

Além da criação de uma rede voltada para o transplante, o médico Antón Fernández Garcia, do Complexo Hospitalar Juan Canalejo, em La Coruña, explica que o sucesso se deve também à possibilidade dos hospitais de receber um reembolso do governo com o que gastam com captação e transplantes de órgãos.

Quanto o assunto é doação, a solidariedade não é o essencial, é complemento. Segundo Garcia, uma pesquisa de rua mostrou que apenas 57% dos espanhóis consultados são a favor da doação de órgãos, o que coloca o País dentro da média europeia. “O motivo do sucesso é uma boa gestão”, afirma.

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