quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Zero Hora

07 de outubro de 2009 N° 16117



ARTIGOS
Sobre os transplantes, por Fernando de Oliveira Souza*

Todos sabemos que o principal gargalo na questão dos transplantes de órgãos é a doação.

O que talvez poucos saibam é que a questão da doação está intimamente relacionada à qualidade do serviço de saúde pública que é prestada no país.

Exemplifico com um caso pessoal: em um hospital universitário de referência da região central do Estado, único com estas características que atende pelo SUS uma população de aproximadamente 1,5 milhão de habitantes de 25 municípios vizinhos, chegou, no serviço de emergência, acompanhado pela mãe, um paciente masculino de 22 anos, motoboy, que tinha caído da motocicleta 15 minutos antes, tendo batido a cabeça, que estava protegida com capacete. Devido ao excesso de pacientes presentes no local, o atendimento demorou um pouco mesmo tratando-se de trauma que tem prioridade. Ao ser atendido, o paciente relatou ao médico que estava bem, sentindo somente uma leve dor de cabeça. Ficou então em observação em uma cadeira, já que as macas e leitos estavam todos ocupados no momento. Algumas horas mais tarde, ao ser reavaliado, estava um pouco sonolento, porém respondia com exatidão às perguntas formuladas. Novo período de observação, ao fim do qual estava francamente sonolento respondendo mal às perguntas. Foi, então, indicada tomografia de crânio, a fim de avaliar possível trauma cerebral. Havia muitos pacientes para fazer tomografia e, mesmo tratando-se da prioridade do trauma, foram mais vários preciosos minutos para se constatar, ao final do exame, que havia lesão cerebral difusa, não passível de tratamento cirúrgico. A mãe, durante todo esse período, desde sua chegada, permanecia quieta e apreensiva, limitando-se a observar os fatos que ocorriam.

Uma vez feito o diagnóstico, foi indicada internação no CTI. Novo problema. Não havia vaga disponível mesmo se tratando de trauma em pessoa jovem. A ansiada vaga só se disponibilizou muitas horas mais tarde e, após um período de avaliação segundo protocolo para esses casos, a mãe foi informada de que o filho não apresentava mais atividade cerebral. Sendo assim, paciente jovem, “saudável”, com trauma exclusivamente cerebral, foi indicado como potencial doador de órgãos.

Então, a mãe veio me procurar com a seguinte pergunta: “Doutor, quando o meu filho chegou aqui, ele estava bem, foi deixado em observação no meio de toda aquela gente, ele foi piorando e aconteceram todas aquelas dificuldades para se conseguir o exame e depois para colocá-lo no CTI. Agora, quando me dizem que ele está ‘morto’, vem um avião de Porto Alegre com ‘cinco’ médicos para atendê-lo. Mas do que serve isto agora? Por que não fizeram isto antes, quando ele estava ‘vivo’?”.

Certas perguntas não têm resposta.

O sistema de saúde tem de funcionar bem, para não parecer que o paciente vale mais morto do que vivo.

*Médico e professor universitário.

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