Falta de remédio coloca em risco pacientes transplantados na Bahia
Seg, 11 de Abril de 2011 07:52
Escrito por Redação
por Conceição Lemes
Os rins são os filtros do nosso organismo. A produção de urina a partir da “limpeza do sangue” é uma das suas principais funções.
Explico. O sangue do corpo (cerca de 5 litros num adulto) passa pelos rins uma vez e meia por hora. Ao final de 24 horas, cerca de 180 litros são “lavados”, resultando diariamente em 1 a 1,5 litro de urina, que é composta de água e resíduos. É através dela que o organismo elimina as toxinas, ou seja, o “lixo” resultante da depuração do sangue. Uma dessas substâncias é a ureia, que resulta do metabolismo das proteínas, e cujo acúmulo envenena as células. Outras: ácido úrico, creatinina, excesso de sódio, cálcio, potássio, fósforo. Tudo junto, o “lixo” corresponde a 5% do volume de urina. Os 95% restantes são água.
Acontece que certas doenças – diabetes e hipertensão arterial não controladas são as principais — lesam os rins, reduzindo progressivamente a sua função, até incapacitá-los de vez. O tempo para isso ocorrer varia de meses a anos. Aí, é preciso diálise – filtragem artificial do sangue – ou transplante renal.
“Em cada 1 milhão de pessoas, aproximadamente 144 entram em diálise por ano no Brasil”, informa o médico Emmanuel Burdmann, professor associado da disciplina de de Nefrologia da Faculdade de Medicina da USP. “Em 2009, estima-se que 27.612 brasileiros iniciaram diálise. Nesse mesmo ano, calcula-se que havia ao redor de 77.589 pacientes em diálise e 30.419 pacientes em lista de espera para transplante renal no Brasil.”
A jornalista Aleksandra Pinheiro, 33 anos, residente em Salvador (BA), passou por tudo isso.
“Ainda bebê tive câncer nos rins. Perdi todo o rim esquerdo e parte do direito. Fiz cirurgia, quimioterapia e radioterapia. Vivi bem até os 25 anos. Aos 26, começei a fazer a diálise”, conta. “Um inferno, mas encarei todas as sessões ao longo de três anos, quando recebi o rim de minha mãe. Sou transplantada renal há quatro anos, tenho vida normal, estou muito bem. Apenas preciso tomar diariamente imunossupressor, para evitar rejeição do órgão.”
“Mas, desde o início de março, a azatioprina [nome do princípio ativo do imunossupressor] está em falta na Bahia”, denuncia Aleksandra. “Quem toma imunossupressor, não pode ‘pular’ a dose. Precisa também cumprir direitinho os horários. Tomar fora de hora e principalmente não tomá-lo, como agora, pode levar o meu organismo a rejeitar o órgão transplantado.”
“Um transplantado renal, se não tem imunossupressor, pode voltar para diálise. Mas para os transplantados de coração, fígado ou pulmão, que também precisam desse remédio, não têm terapia substitutiva”, observa. “São casos ainda mais graves. Na Bahia, há cerca de 6 mil transplantados, a maioria transplantado renal. Os pacientes renais em diálise também ficaram sem a eritropoetina.”
“Antes, quando faltava um ou outro remédio, eu ia à Sesab [Secretaria de Saúde do Estado da Bahia], falava no setor de Medicamentos de Alto Custo, em até cinco dias, a gente tinha o problema resolvido. Agora, não”, diz, indignada. “A Sesab nada explicou nem atendeu a mim nem aos outros pacientes. A Sesab não dialoga com a gente, ficou em silêncio. No dia 5, a soltou uma nota que os remédios para pacientes renais já haviam sido distribuídos. Um engodo, fui ao hospital pegar, não tinha.”
SESAB CULPA MS PELA FALTA DA ERITROPOETINA; AZATIOPRINA, O FORNECEDOR
Uma das funções dos rins é a fabricação de eritropoetina — hormônio que estimula a produção de glóbulos vermelhos pela medula óssea. A doença renal acarreta a sua falta, provocando anemia. Daí a indicação de injeções periódicas de eritropoetina para uma parte dos doentes renais crônicos.
A eritropoetina é produzida em várias apresentações: 1.000 UI (Unidades Internacionais), 2.000, 3.000, 4.000 e 10.000 UI. Em geral, se recomenda para pacientes adultos 100 a 150 UI por quilo de peso três vezes por semana. Isso significa que alguém pesando 60 kg, recebe 6 mil a 9 mil UI, três vezes por semana. Uma ampola de 4 mil UI custa cerca de R$ 170. Portanto, um tratamento caro, totalmente custeado pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
“Desde 2010, o Ministério da Saúde centraliza a compra de eritropoetina de 2 mil UI e 4 mil UI, que são as mais usadas. O ministério não entregou no prazo. Daí a falta”, justifica Lindenberg Assunção, diretor do setor de Farmácia da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia. “Inicialmente passamos para 3 mil UI [o estado compra a medicação nas apresentações de 3 mil e 10 mil UI] os pacientes nos quais era possível fazer a alteração. Mas logo o que tínhamos acabou. A minha hipótese pessoal para o atraso do ministério se deve a problemas de fim de ano, fechamento do orçamento, férias coletivas nos laboratórios farmacêuticos e à eritropoetina não poder ser estocada por longos períodos; como é medicamento biológico, a fabricação só é feita após a formalização da compra.”
Já a azatioprina é um remédio barato. Cada comprimido custa menos de R$ 1. Mas não existe em farmácias. Só pode ser adquirido pelo ministério e secretarias de Saúde.
“As compras são por licitação, vence quem oferece o menor preço”, diz Lindenberg Assunção. “No caso da azatioprina, o fornecedor, a Vidafarma falhou na entrega. Na verdade, um atravessador, pois o medicamento é fabricado pelo laboratório EMS. Já entramos com ação contra ambos e fizemos uma compra de emergência. Só que esse processo demora cerca de um mês, já que os laboratórios normalmente se localizam nas regiões Centro-Oeste e Sudeste do Brasil.”
“Para os medicamentos de alto custo, normalmente nós temos estoques para 2 a 3 meses; já os de baixo impacto financeiro, como a azatioprina, para 4 a 6 meses. No final de 2010, nós tínhamos azatioprina para 4 meses. Em fevereiro, quando fomos comprar, o laboratório não entregou”, expõe Lindenberg Assunção, que promete. “Até quarta-feira, 13 de abril, a distribuição da azatioprina na rede pública da Bahia de saúde estará normalizada, a da eritropoetina já se regularizou durante a semana passada.”
MAIS TRANFUSÕES DE SANGUE, RISCO DE REJEIÇÃO E PERDA DO TRANSPLANTE
Em 2007, o governo da Bahia garantia a 20 mil pacientes, via SUS, acesso gratuito a medicamentos de ponta, que custam muito caro. Atualmente, somam 60 mil. São portadores de várias doenças, como hepatite C, artrite reumatoide, enfisema pulmonar, câncer e insuficiência renal crônica. Isso representa, segundo a Sesab, um custo de R$ 8 mil por paciente/ano.
Sem dúvida, um salto de qualidade importante, infelizmente comprometido pela falta desses dois medicamentos.
“O não uso da eritropoetina, quando indicada, piora a anemia, consequentemente a qualidade de vida dos pacientes [surgem ou pioram sintomas como cansaço, fraqueza, desânimo], obrigando a maior número de transfusões sanguíneas”, alerta o professor Burdmann. “Já a administração inadequada ou a falta de azatioprina [deve ser tomada diariamente] pode provocar rejeição e até a perda do órgão transplantado.”
Independentemente do culpado e da causa, o desabastecimento é lamentável. Um planejamento mais rigoroso do Ministério da Saúde e da Secretaria da Saúde do Estado da Bahia provavelmente teria evitado isso.
“Se a Sesab tivesse sido transparente, já teria nos ajudado”, insiste Aleksandra. “O problema é que optou pelo silêncio. E quando soltou uma nota, não era exatamente a verdade. Por isso, repito. A Sesab não dialogou nem comigo nem com os outros pacientes.”
Lindenberg Assunção nega: “Nós estamos sempre à disposição. Basta nos procurar.”
Pois Aleksandra vá à Sesab. É um direito seu cobrar explicações e os remédios. Um dever da Sesab fornecê-los. Se a distribuição não estiver regularizada até quarta-feira, denuncie de novo. É o transplante de 6 mil pacientes que está em risco.
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